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O evangelista do Ano A

S. Mateus é o evangelista do ano litúrgico ainda em curso (Ano A). Por esse motivo, e ocorrendo a sua festa no próximo dia 21, proponho-me falar dele e do seu evangelho.

Habitualmente identificado com Levi, filho de Alfeu1, Mateus era natural de Cafarnaum e dedicava-se à cobrança de impostos (publicano). A dada altura, foi chamado por Jesus, a fim de ser seu discípulo (Mt 9, 9-13)2 e, por isso, o seu nome consta dos elencos dos Doze (Mt 10, 3; Mc 3, 18; Lc 6, 15; At 1, 13). 

A tradição atribui-lhe uma obra que ostenta o seu nome, um dos evangelhos mais belos e, durante séculos, o mais utilizado pelos cristãos. Pelo conhecimento que mostra possuir das Escrituras e das tradições judaicas, pela forma como fala de Jesus e pelo modo como organiza o texto, o autor deste evangelho só pode ser um judeu que se tornou cristão, perito na arte de ensinar e de ajudar a compreender o mistério do Reino dos Céus e o tesouro da Boa Nova anunciada por Jesus. 

Tradições antigas, ainda que pouco credíveis, referem que, depois da morte e ressurreição de Jesus, Mateus foi para a Pérsia, para Arábia e para a Etiópia, em missões de evangelização. Nesta última, teria sido perseguido e executado. As suas relíquias encontram-se na cripta da catedral de Salerno (Itália), cidade de que é padroeiro e que, a 21 de setembro de cada ano, lhe dedica uma solene procissão. É também padroeiro dos banqueiros, cambistas, contabilistas e auditores, entre outros.

Quanto ao evangelho que a tradição lhe atribui, foi, até há um século atrás, o mais apreciado pela Igreja. Para tal, muito contribuiu a sua linguagem facilmente memorizável, a sua estrutura sólida e facilmente compreensível, a sua orientação ética e ainda a convicção generalizada de que teria sido o primeiro a ser escrito3.

Do seu conteúdo, destacam-se cinco discursos bem construídos que desenvolvem, em outros tantos momentos, o pensamento de Jesus sobre o reino de Deus. Trata-se de um reino promulgado e delineado na figura do discípulo perfeito, apresentado no discurso ou sermão da montanha (cc. 5-7), alargado no discurso missionário (c. 10), descrito no discurso parabólico (c. 13), um reino que tem início na Igreja e cujas regras são expostas no discurso eclesiológico (c. 18) e que encontra a sua realização plena, descrita de forma simbólica, no discurso escatológico (cc. 24-25).

As correspondências que se registam entre o primeiro e o quinto discursos, entre o segundo e o quarto, assim como a centralidade do terceiro dão origem a uma estrutura quiástica concêntrica: discurso da montanha que termina com uma conclusão escatológica (A); instrução aos Doze (B); discurso das parábolas (C); instrução à Igreja (B’); discurso escatológico (A’). 

O evangelho de Mateus usa com frequência a Escritura (66 citações)4 e dá relevo a Jesus Messias, “realização” da Lei e dos Profetas (5, 17). Veja-se, a propósito, as “citações de realização”, introduzidas pela expressão “para que se realizasse quanto foi dito…” (1, 22; 2, 15.17.23...) ou outras (4, 6.7: “está escrito”).

Apresenta muitas semelhanças com os restantes sinóticos (Marcos e Lucas), mas difere deles na organização e na perspetiva eclesiológica. É o único evangelista a usar o termo “Igreja”5 e, em relação a Lucas, trata a infância de Jesus de modo bastante diferente6.

Sendo Mateus o evangelista do ano litúrgico ainda em curso, a sua festa afigura-se como o momento ideal para a (re)leitura deste evangelho, na sua globalidade e de forma contínua. Vamos a isso... e boa leitura! 

1 Cfr. Mc 2, 13-17.
2 É sugestiva a pintura da “Vocação de S. Mateus”, posta em tela por Caravaggio, entre 1599 e 1600. Encontra-se na Igreja de S. Luís dos Franceses, em Roma.
 3 Estudos relativamente recentes chegaram à conclusão de que o primeiro evangelho a ser escrito foi Marcos, pelo ano 70 da era cristã. Deste modo, a ordem canónica dos evangelhos (Mateus, Marcos, Lucas e João) não corresponde à ordem histórica da sua redação final (Marcos, Mateus, Lucas e João).
4 Trata-se de citações de diversos livros das Escrituras judaicas que correspondem, grosso modo, ao nosso Antigo Testamento. 
5 Tal acontece em Mt 16, 18, aquando da confissão messiânica de Pedro: “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja e as portas do Abismo nada poderão contra ela”.
6 A diferença mais evidente está no relevo dado por Mateus a José e por Lucas a Maria. Além disso, quer um quer outro apresentam textos próprios e exclusivos: Mateus não fala de João Batista, ao passo que Lucas apresenta, em paralelismo, João e Jesus; Mateus é o único a referir os Magos do Oriente (2, 1-12), a fuga para o Egito (2, 13-15) e o Martírio dos Inocentes (2, 16-18) e Lucas único em textos como a Anunciação (1, 26-38), o cântico de Maria (1, 46-56) e o cântico de Zacarias (1, 68-79).

P. João Alberto Sousa Correia

P. João Alberto Sousa Correia

18 setembro 2023