Como os mais novos que se mostram esfuziantes com os brinquedos acabados de receber, incapazes de se separarem deles, o primeiro-ministro não tem ultimamente largado o epíteto de “populista”, usado para apodar a torto e a direito os adversários. A torto, empregou-o contra Rui Tavares por causa de uma palavra que o deputado do Livre usou durante o debate parlamentar de quarta-feira. A classificação é particularmente inapropriada porque Rui Tavares é um deputado que se exprime com assinalável rigor e apreciável moderação vocabular.
O melindre do primeiro-ministro ficou a dever-se à circunstância de o deputado ter usado a palavra “lamaçal” quando, avisadamente, referiu que, “para evitar que o país e a política se transforme num lamaçal”, todos têm “um papel a desempenhar”. António Costa achou que o termo demonstrava que o vírus do populismo, que se transmite vocabularmente, tinha contaminado Rui Tavares. Se o primeiro-ministro tivesse razão, o vírus circularia desde há muito e teria contaminado, por exemplo, Carlos da Maia, que considerava “o país uma choldra ignóbil”, e João da Ega, que o olhava como “uma choldra torpe” [1].
Não é, todavia, mentira que os populistas abusam constantemente de um vocabulário de “choque e pavor” que se dirige à componente mais irracional de cada um, aos instintos primários. Fazem-no também porque desse modo chamam a atenção. É esse também o isco a que os media menos escrupulosos recorrem para conquistar clientela. A escolha das palavras presta uma boa ajuda aos que pretendem identificar a qualidade jornalística e reparar onde espreita ou se escancara a manipulação.
Em El estilo del periodista [2], o jornalista Álex Grijelmo apresenta uma lista de exageros vocabulares frequentíssimos em títulos em que o amor à verdade cede lugar à exploração emocional. Em vez de “os preços sobem”, surge “os preços disparam”. Quando o rigor obrigaria a dizer que uma determinada pessoa “fala”, eis que se indica que ela “quebra o silêncio”. Uma “entrevista a fulano” transforma-se em “fulano confessa-se”. Em substituição de “fulano critica”, encontra-se “fulano denuncia”. Os exemplos abundam. A mera “conversação privada” é sempre uma “conversação secreta”. O “mau tempo” é um “temporal” e, se for o caso de ser mesmo um “temporal”, é uma “catástrofe”.
Os espaços televisivos de comentário político têm documentado o quão essa escalada vocabular tão facilmente se regista. É sobejamente conhecida uma expressão que refere um singular aumento de tensão: “Se um diz ‘mata’, o outro diz ‘esfola’”. No comentarismo ou num título, o que pode ser “importante” é invariavelmente “histórico”. A atenção pode assim mobilizar-se mais facilmente. O mesmo sucede quando o “descontentamento” se apresenta como “frustração” e a “alegria” como “euforia”. Tudo tem de ser extremado como se a moderação tivesse de ser expulsa do espaço público.
O negócio das redes sociais, assente na conquista e na manutenção da atenção, não dispensa a polarização e as palavras são o instrumento para a exacerbar e a acelerar.
Em vez de “dúvidas”, a “polémica”; em vez de “polémica”, o “escândalo”. Uma “discussão” é um termo brando que cede espaço a uma “bronca”.
Quem escrutinar as palavras usadas pelos abusadores vocabulares, reparará que onde podia estar a “preocupação”, surge o “alarme”. Se “alarme” houver, falar-se-á de “pânico”. Havendo “pânico”, troca-se por “caos total”. Os populistas sabem que apenas prosperam se e onde causarem medo e raiva, para o que necessitam de inflacionar o palavreado.
Para atalhar a disseminação do populismo, para defender a decência da vida em comum, impõe-se também, como sugeriu Timothy Snyder [3], estimar a linguagem. É necessário não papaguear as palavras e as frases que se tagarelam nos media. Para o historiador, importa possuir uma visão mais ampla das coisas. E isto requer leituras. Por isso, Timothy Snyder oferece uma sugestão: “Livra-te dos ecrãs que tens no quarto e cerca-te de livros”. Bons livros.
[1] Os Maias. Lisboa: Livros do Brasil, s.d.
[2] Madrid: Taurus, 2001
[3] Sobre a tirania. Vinte lições do século XX. Lisboa: Relógio d’Água, 2017