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“Vale o que vale”

Chegou-me às mãos a revista Sábado, de 04 de maio último, em que uma foto de Salazar ocupava toda a sua capa. Já o conteúdo resumia-se a uma investigação aos milhares de cartas que o ditador recebera dos mais variados quadrantes, de então, da vida portuguesa. Nela, o jornalista escolheu relatar alguns dos seus assuntos, a identidade de quem os escrevera e quais os seus propósitos. Tendo chegado à conclusão de que se tratava de pedidos, cunhas e favores. Porém, sem especificar quantos deles foram satisfeitos, o que me deixou algo desapontado. 

Se era sua intenção procurar alguns podres, afinal, a montanha mais parece ter parido um rato. Ou seja, em pouco mais de algumas dezenas de cartas dirigidas ao ditador, destacou as dos seguintes teores: pedidos para ele favorecer um seu sobrinho; de um Bispo para empregar o irmão e de uma conhecida jornalista para colocar um familiar; de aconselhamentos, de foro conjugal a alguns políticos; de ajuda financeira e, também, de agradecimentos.  

Aludia, sobretudo, a uma carta escrita pelo nosso atual Presidente Marcelo, cujo pai era ministro do governo salazarista. Imagine-se para quê. Para agradecer uns livros, conforme manda a boa educação, que Salazar lhe havia oferecido. Não sei o que de interessante haverá nisto, tratando-se de um miúdo com 11 anos. Mas de uma coisa tenho quase a certeza. É que não eram antipatrióticos, nem da destruição de valores cristãos. 

Talvez um pouco mais de rigor e profundidade não ficasse mal ao investigador. E, já agora, dizer-nos quantas mais missivas existem, nesse espólio, da autoria de pessoas que depois do 25 de Abril de 74 se encaixaram nos partidos políticos da democracia. Isso é que interessava mesmo. É que eu vivi 26 anos nesse regime ditatorial, mas há muitas coisas ditas que me custam a engolir.

Se até Humberto Delgado fez um pedido escrito ao famoso Presidente do Conselho, como o autor do trabalho revela, outros como ele certamente o terão feito. E se sim, acho que deveria e especificar o teor de cada um deles e se tiveram, ou não, resposta positiva. Estarei eu a sonhar, ou hoje não existem cunhas, pedidos, favores, endogamia, forrobodó com dinheiros públicos, etc.? 

Pois é. Nos dias que correm, basta ter o cartão de militante dos dois maiores partidos políticos para aceder a todas as benesses e mais algumas. O que não é treta, nem populismo, mas tão somente a realidade atual. Já os senhores do velho regime se tivessem sido uns tratantes, similares aos de hoje, teriam feito desaparecer toda as informação, cartas, fotos, ficheiros e pareceres, já que computadores só em 1969 começaram a dar os primeiros passos. 

Mas como um dia reconheceu Mário Soares, Salazar era uma pessoa séria. Pois se o não tivesse sido, teria deixado a sua governanta bem de vida, isto é, procedido como alguns dos nossos políticos, que nos últimos 50 anos vêm administrando o nosso país. Tão desonestos ao ponto de entupirem os tribunais com inúmeros processos que a Justiça não consegue julgar. 

Andar sempre a fossar no espólio de quem já não anda por cá, acho péssimo. Porque se andasse, certamente que não só apontaria o dedo a muitos daqueles que o bajulavam, como ficaria embasbacado com tanta opacidade, arranjinho, sem vergonhice, mentiras e golpadas ao erário público. 

Se era propósito do jornalista investigar o passado e procurar algo estrondoso, devo-lhe dizer que falhou. Ademais trazer a terreiro algo que não espanta nem esclarece, não faz sentido. Faria, caso se tratasse de crimes de corrupção com “propina”, ou “rachadinha”, como dizem os nossos irmãos brasileiros.  

O país precisa de rumar em frente, como o fizeram os nossos navegadores de antanho: de ter um Governo que o defenda e encoraje para os desafios do futuro, a fim de que Portugal se afirme na Europa, no mundo e se cumpra; com menos prosápia, mais honestidade e, sobretudo, boas obras. Porque este fetiche pelas cartas não só “vale o que vale”, como não vem acrescentar nada à Nação Lusa.

 


 

Narciso Mendes

Narciso Mendes

22 maio 2023