É um lugar-comum dizer-se que uma imagem vale por mil palavras. E, de facto, todos o entendem, um símbolo, uma estátua, uma imagem transportam mensagens ora mais, ora menos codificadas, ora mais, ora menos explícitas.
A conceção de um selo para a Jornada Mundial da Juventude (JMJ) de 2023, em Lisboa, no qual o Papa Francisco aparece a liderar um grupo de jovens, numa representação que transfigura as personagens esculpidas no Padrão dos Descobrimentos à beira-Tejo, permite uma ampla apreensão do seu significado. Apreensão ampla, mas, por isso mesmo, potencialmente problemática, atenta a “polissemia” da imagem.
Edificado de forma efémera em 1940, no contexto da Exposição do Mundo Português, e de forma perene mais tarde, em 1960, o Padrão dos Descobrimentos é muito simbólico.
Numa visão cosmopolita benévola, o Padrão dos Descobrimentos pode ser percecionado como representando a ousada gesta dos portugueses de quatrocentos que, na muito conhecida expressão de Camões nos Lusíadas, deram “novos mundos ao mundo”, ou seja, abriram a Europa da época para realidades desconhecidas.
O Estado Novo, nacionalista, maximizou a exploração dos feitos de Portugal ao tempo das Descobertas e, assim, esta obra, esteticamente apelativa, encaixava perfeitamente no espírito da época. Na estilizada caravela representada pelo Padrão dos Descobrimentos viajam o Infante D. Henrique, como timoneiro, e toda a sorte de gente necessária para que Portugal construísse o seu futuro império, desde os guerreiros e colonizadores até aos evangelizadores.
E registe-se que Portugal pode ostentar brio pelo seu papel precursor na globalização decorrente da expansão e descobertas. Mas há sempre um “mas”, há sempre o outro lado.
Não conseguimos imaginar, para nos atermos a um só exemplo, que o imenso território das Américas fosse ainda hoje um exclusivo dos índios nativos (escassos), como sucedia por 1500, antes Colombo os “visitar”. O mundo comportará hoje, estima-se, uma população cerca de 16 ou 17 vezes superior à observada por 1500. Assim, acaba por se aceitar como algo inevitável a invasão europeia após 1500, como sucederia se hipoteticamente tal invasão tivesse sido desencadeada, mais tarde ou mais cedo, por outros povos. Ademais, no mundo atual, em que a pressão migratória de povos do “Sul Global” em direção à Europa ou aos EUA é vigorosa, a defesa da hipotética preservação do exclusivismo ameríndio por tempo indefinido soa quase a quimera.
Recuemos um tanto mais. O território que hoje constitui Portugal sofreu, há mais de 2000 anos, a ocupação romana. E podemos reter que, na globalidade e a longo prazo, a invasão foi benévola, trouxe desenvolvimento para um território atrasado.
Do choque da expansão portuguesa e europeia também resultaram, necessariamente, as designadas “permutas culturais”. Porém, na parte mais substancial da sua afirmação, a expansão portuguesa (para lá da descoberta dos Açores, Cabo Verde, etc.) foi invasão e ocupação. E nessa ocupação e invasão, depois disputada por outras potências europeias, emergiram marcas de violência e espoliação, de entre as quais o designado “tráfico negreiro”, dirigido para as Américas, sobrevém como a mais infame. A escravatura praticava-se, então, dentro dos próprios reinos africanos, em menor escala, e foi também volumosa e violenta quando dirigida para os “reinos” do Norte de África e da Península Arábica. Mas o tráfico humano através do Atlântico atingiu proporções singulares, é dado por adquirido.
A Jornada Mundial da Juventude, na senda do pensamento do Papa Francisco, propõe-se ser um fator de agregação no universo católico, um fator de afirmação intercultural, um encontro promotor do espírito da paz e da tolerância entre os jovens, futuros decisores nos seus países e no mundo. O selo agora escolhido, na sua imagem captou o espírito proselitista que esteve também subjacente à epopeia das “descobertas” de 1500. Todavia, o catolicismo de hoje requer um espírito proselitista moderno.
O desconcerto na imagem veiculada pelo selo da JMJ (agora retirado) decorrerá de não ter sido efetuada, previamente, uma necessária leitura plena ou “polissémica”. Para muitos dos jovens participantes na “Jornada”, sobretudo se descendentes de indígenas de África ou da América, o selo pode também evocar a conquista, a ocupação, a repressão e a violência inerente à expansão europeia observada por cerca de 500 anos. E essa era uma imagem, uma ilação, que poderia ter sido evitada.
Nota – A presente crónica foi escrita antes da retirada de circulação do selo da JMJ (enviada para o DM imediatamente após tal decisão).