Dizia-me, há dias, um amigo que isto de ir ao café diariamente tem o seu ritual, o seu sortilégio, e adiantava que os dias para ele não são os mesmos, não têm o mesmo sabor, o mesmo significado se não for ao café, nem que seja para saborear o dito cafezinho.
– Parece que a semana fica vazia, sem sentido – rematava ele.
Ora, é preciso que se diga, para que não pensem que este meu amigo exagera, que ele, no café que frequenta, faz parte de um grupo que já vem de muito longe, que ganhou raízes, que se delonga em animadas tertúlias; e, então, é caso para dizer que ele vem, um tanto em busca da sua origem, das suas vivências, a mesa do café; claramente vem sentir-se cúmplice com o grupo no cavaqueio que desenvolvem, nas ansiedades que desenrolam, até na catarse que, no fundo, todos ali vão fazer, após dias e dias, quantas vezes de frustrações medos.
Este meu amigo tem a sua razão e a sua verdade que, igualmente é a verdade e a razão de um grupo que, à mesa do café, se prolonga, se completa, se define, se enriquece; e assim é que o ato simples de ir ao café encerra toda uma filosofia de gestos, de gostos, de conceitos e de vida que escapam a uma análise simplista.
Pois bem, nesta cidade há ainda alguns cafés que conservam muita de sua traça original, quer no perfil da clientela que os frequenta e no habitat que lhe proporciona, quer na moldura física e ambiental que os carateriza; e isto porque resistiram, estoicamente, ao surto de progresso que os assediou – progresso que destrói o convívio e a paisagem humana, que nos destrói também a nós, ao substitui-los por bancos, boutiques, gelatarias, croissanterias, lanchonetes, leitarias e modernismos quejandos.
Note-se que, excetuando a novidade que ostentam de, semanalmente, encerrarem para descanso do pessoal, estes cafés mantêm-se antigos e animados espaços de convívio e, porque não dizê-lo, de cultura com os seus grupos de frequentadores assíduos, organizados e ativos numa atmosfera de salutar familiaridade.
Já sou do tempo em que na maioria dos cafés da nossa augusta cidade, às suas mesas se lia, se se estudava, se escrevia, se cavaqueava, se mexericava, se negociava, se sofria, se desejava, se ansiava, se conspirava e, até, se namorava; e quase se pode dizer que para muitos de nós, jovens estudantes, eram a nossa segunda, senão a primeira, habitação, pois muito tempo neles consumíamos, e, a maioria deles se esmerava na manutenção das suas peculiares caraterísticas de sociabilidade tendo os jornais diários da terra e não só para dar a ler aos seus clientes.
Agora, é bom que se diga que Braga tem num bom punhado de cafés, já velhos de décadas, um autêntico postal ilustrado de bem receber e de bem tratar que urge preservar; depois também se deve realçar que, se alguns têm resistido à sanha demoníaca de certo progresso alheio à sua cultura e vivência, é por força da alma bairrista de seus proprietários e à fidelidade vivencial de suas clientelas; todavia, é tempo, lugar e modo para se dizer e desejar que seja por muitos, longos e risonhos anos a bem de todos e desta cidade bimilenar que sempre os deve merecer e acarinhar.
Da mesa do café, onde me sento neste momento, sinto o ferro das palavras de dois cavalheiros que se sentaram junto à entrada; eles têm o ar de pessoas que vêm de outros tugúrios, pois parecem desenraizados, assustados e confusos com as vozes, os gestos, as intenções dos empregados que se abeiram, apenas, para lhes venderem um café ou uma cevada por entre uma garçota ou anedota.
Ouço-os falar de política e de políticos, da vida que está ruim, mas que tem de se viver todos os dias infalivelmente; por isso o tom das suas palavras soa e ressoa, porque é chumbo – pesa, fere, destrói; e porque, normalmente, quando à mesa do café se junta política e políticos, as coisas não correm bem, já que, quase sempre, se distorcem e contorcem as realidades e verdades, muitas vezes.
Neste café, há pessoas que nitidamente gastam o tempo e os cotovelos, procurando ronceiramente viver matando o tempo; elas carregam todos os dias o mesmo pasmo, a mesma angústia, a mesma solidão; e ficam-se para ali, vazias e vagas à espera da hora de nada, da hora do almoço da favas, da sesta sem sono, do jantar de malvas da insónia da noite, pesada e comprida.
É o tempo e a vida; é a verdade amarga de todas as horas de todos os dias: para uns, o tempo que sobra na vida que falta e para outros a vida que sobra no tempo que falta.
Então, até de hoje a oito.