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“Para quem vivo eu ?”

Na primeira leitura que fiz da Exortação Apostólica Pós-Sinodal Christus vivit, dirigida aos jovens e a todo o Povo de Deus, chamou-me à atenção um pormenor que surge em quase todas as conclusões pretendidas pelo Papa. Dentre estas novidades a reavivar ou a readquirir, ficou-me uma ideia que me ajuda na vivência evangélica. Hoje partilho-a convosco, esperando ser útil a quem procura, tal como eu, tornar o sínodo num processo quotidiano que exige uma permanente conversão. A resposta que nós, cristão, teremos de dar, deverá incidir nas necessidades dos outros, e não aquilo que consideramos de importância pessoal; o discernimento deve colocar sempre a vida perante os outros. 

É nesta certeza que o Santo Padre inverte o esquema habitual e ousa afirmar que, muitas vezes, perdemos tempo interrogando-nos: “mas afinal quem sou eu?”. O Papa reconhece que podemos passar a vida inteira sem conseguirmos uma resposta para esta questão, ou seja, sem nos encontrarmos com a nossa identidade. Perante esta hipótese de insucesso, aconselha-nos a formular a pergunta de um modo totalmente diferente: “Para quem sou eu?”. Não tenho dúvidas de que é aqui que se situa a verdadeira compreensão da comunhão, da participação e da missão, os três itinerários deste sínodo que devem ser permanentemente equacionados. Temos a vida que nos foi dada, mas para quem deverá ser ela? A grande maioria centra-se no seu próprio egoísmo, mas não é necessário pensar muito reconhecer que a interdependência deve ser generalizada, nunca deveremos duvidar de que a vida nos foi dada para que voltemos a dá-la: dá-la a Deus, dá-la aos outros, à transformação da natureza em espaço de harmoniosa presença de Deus. Temos dons, talentos, carismas e serviços, mas, diante de Deus e da Igreja, ninguém é o dono absoluto da sua vida. Contudo, se aceitarmos olhar para fora de nós, receberemos tudo aquilo de que necessitamos para experienciar uma vida de felicidade. 

Temos insistido na conversão que a caminhada sinodal irá exigir, e é inquestionável que deveríamos trabalhar quer o nosso interior, quer o exterior, pois ser ousado na oferta gera a alegria de quem não perde a vida com coisas fúteis, mas que procura obter resultados consistentes.

Quem acredita seriamente sabe que o Espírito Santo conduzirá as coisas pelos caminhos mais indicados para o presente e para o futuro da Igreja.

Creio que já se aperceberam de nunca foi minha intenção abordar aqui questões que poderão ser consideradas polémicas pelas inúmeras discussões que irão provocar. Fugindo deliberadamente a estas questões, tenho optado por atitudes e comportamentos que devem marcar a renovação eclesial, que, na minha perspetiva, pressupõe uma mudança comportamental em diversos aspetos, porque a novidade nunca deve ser desconsiderada e a fidelidade garantirá o justo caminho a percorrer. As assembleias sinodais, locais e internacionais, já nos deram a perceber que há questões que têm gerado controversas: há quem se apegue a conceitos e atitudes anquilosados e quem exija uma reformulação doutrinal. Sabemos que irão surgir muitas discussões e críticas; sabemos que iremos encontrar grupos unidos na defesa daquilo que consideram valores, mas que se irão posicionar contra os outros. Mas a condição prévia, como verdadeira espiritualidade sinodal, terá de ser este reconhecimento de que somos para os outros e que, com eles, podemos ter ideias diferentes; podemos navegar em águas totalmente diferentes, com ou sem horizontes claros.

Se não soubermos caminhar de mãos dadas, reconhecendo que, quanto mais vivemos para os outros mais nos enriquecemos, os resultados sinodais serão muito exíguos; ficaremos sempre à porta e nunca seremos capazes de saborear o essencial do caminhar juntos. 

As três palavras escolhidas pelo papa — Comunhão, Participação, Missão — são caminho obrigatório. Alguns sacrifícios poderão custar. Alguns momentos de desalento poderão acontecer. Mas, recomeçando sempre esta aventura, que consiste em saber para quem vivemos (desde que não seja para nós mesmos), este caminho será luz e indicador de caminhos. Poderá demorar mais tempo a fazer-se, mas é certo que trará à Igreja e a todos os seres humanos a luz de que tanto necessitam. Se centralizarmos aqui as nossas atenções, então a luz no mundo acontecerá. 

Tudo o que foi dito anteriormente relembra-nos o que o Cardeal Grech, Secretário do Sínodo, tem referido: “O Sínodo não é assembleia, mas celebração e, como tal, deve ser pensado e vivido numa dimensão mística mais que organizativa.” Acredito que as correntes que defenderem a segunda opção exercerão uma pensada pressão, mas também sei que muitos cristãos exigirão respostas para a questão: “para quem vivo eu?”. Espero que a Igreja, na generalidade, opte pelo essencial e que não se esqueça de que “os resultados acontecerão se as pessoas estiverem abertas à ação do Espírito que guia a Igreja.” Este é um trabalho difícil e que supõe um exigente exercício da inteligência, mas que se abre a uma visão muito mais abrangente da realidade, sempre norteada por um sentido que orienta para a integridade da visão humana, que se enraíza numa tradição que, pelo valor que teve durante séculos, ainda dá frutos.

A igreja é detentora de um passado rico, mas sabe que, se souber investir na vida, o seu futuro será mais ainda mais resplandecente.

D. Jorge Ortiga

D. Jorge Ortiga

13 maio 2023