Por estes dias estarei em mais uma caminhada para Santiago de Compostela. Desta vez o Caminho Inglês, que se inicia em Ferrol, servirá para mais uma retirada do bulício hodierno desenfreado.
Um dos ensinamentos que mais me marcaram no batismo destas caminhadas, por estimados e experientes amigos, foi a necessidade de escolhermos um tema de reflexão e sobre ele nos debruçarmos enquanto nos deixamos imergir no silêncio de tantos quilómetros de estrada e pó. É algures nesse espaço temporal que nos depararemos com algo que se acende ou se torna mais claro. Nos momentos em que a geena da dureza das etapas nos detiver na dúvida da determinação, aí sairemos de espírito renovado. E é assim que, mais uma vez, a estrada, o caminho e a viagem se tornam de forma renovada espaço de transformação.
Na sua última obra, A Metamorfose Necessária 1), Dom José Tolentino Mendonça disserta precisamente sobre a figura de Paulo de Tarso, no seu pendor de viajante e no famoso episódio da conversão da estrada de Damasco. Sempre de forma erudita, acutilante e sem ligeirismos, a sua obra poética e ensaística tem o dom de não colocar de parte o comum leitor, mas nunca deixa de se aprofundar numa hermenêutica de textos seculares e eruditos, poéticos ou complexos, no fundo, toda a profundidade humana matizada e escalpelizada numa escrita inclusiva.
Diz o autor que vida de um itinerante se reveste de “provação e a dificuldade das múltiplas provas […] como a de todo o peregrino e viajante, é recheada de durezas, de factos inesperados, de contrariedades”. O caminho espelha a vida; a determinação para superar as dificuldades consegue-se na força interior. A leitura desta obra abriu-me a uma nova visão sobre o Caminho de Santiago, na medida em que toda a caminhada é uma busca dessa metamorfose pessoal. Basta a singela vontade de apenas ir, pois como diz o autor, as vontades são tantas quantos os caminhantes “Homero descreve a viagem de um regresso a si, Píndaro refere a inspiração que só os longos trilhos oferecem”. As palavras e ações de Paulo de Tarso perduraram no tempo porque resumem a necessidade humana de se abrir a janela do mundo que são as paisagens que nos exortam à alegria da liberdade e a derrota do anseio do que está por vir.
Em cada nova partida levo sempre todos os amigos, os peregrinos, que comigo caminharam. Todos eles simbolizam os pilares humanos que nos sustentam nas agruras da vida: “Que seja o caminho a vir ao teu encontro. Que o vento sopre sempre a teu favor. Que o brilho do Sol aqueça o teu rosto e a chuva caia suave nos campos. Até que voltemos a encontrar.” 2)
1 A Metamorfose Necessário, Edição Quetzal, Novembro de 2022 - Bispo e arquivista responsável pela biblioteca do Vaticano
2 Rezar de Olhos Abertos, Edição Quetzal, Novembro de 2020