1. O título, entre aspas, inspira-se em escritos do académico russo Sergeï Medvedev, que deixou a Rússia e lecciona na Universidade de Praga e na Universidade Livre de Riga, autor da obra “As Quatro Guerras de Putin” (2020), onde inquire os contornos impiedosos do Estado-Leviatã da Rússia, que ele descreve como "terra queimada, imóvel e escravizada", autor também de “A War Made in Russia” (2023), que acaba de sair a lume. Segundo o autor, a Rússia no início do século XXI trava quatro guerras: a “guerra territorial”, na Ucrânia, na Geórgia, na Síria, no Árctico, onde o sonho neo-imperialista projecta o seu poderio militar e influência; a “guerra simbólica”, ostentada pela fortaleza do Kremlin e que se completa com mísseis nucleares, desfiles militares e um patriotismo seguidista da novel identidade russa; a “guerra ‘biopolítica’”, relativa à esfera privada dos cidadãos (orientação sexual, a religião, a educação, contactos com estrangeiros), recorrendo ao termo “biopoder” (de Michel Foucault) porque se intenta controlar o que tem a ver com o ‘corpo’ dos cidadãos (orientação sexual, proibição de adopção estrangeira, violência corporal da polícia contra manifestantes, tortura, etc.); e a “guerra memorial”, reabilitando Estaline e rejeitando os traumas do passado pela construção duma nova história que reviva os sonhos da alegada grandeza imperial passada.
2. No livro de 2020, Sergeï mostra como o regime totalitário de Putin se caracteriza pelas marcas dos dois grandes totalitarismos do século XX – o nazismo e o estalinismo –, mas sem o respaldo de uma ideologia, impondo de cada vez os supostos interesses do momento, que, ultimamente, convergem para a conquista de território em ordem ao restabelecimento do Império Russo czarista; com esse escopo invadiu a Ucrânia e moveu esta guerra permanente, visando tão somente a sua destruição e a carnificina do povo ucraniano. Se virmos bem a conduta do exército russo na Ucrânia e as intervenções de próximos de Putin, não se trata só de conquistar territórios em Donbass ou de salvar as populações de língua russa (estas também maltratadas), mas de destruir a Ucrânia como nação, como língua, como entidade política, não com base numa ideologia, mas porque esse é o interesse nesta conjuntura – mais um traço do pós-modernismo.
3. Por isso assistimos ao surgimento dum novo tipo de fascismo, não como os do século XX – ligados a uma ideologia –, embora colha elementos do estalinismo ou do nazismo para se perpetuar no tempo: eis o “fascismo pós-moderno”. Assim, a Rússia afirma ter desencadeado esta guerra duma ferocidade inimaginável para lutar contra os "nazistas ucranianos", quando o próprio regime adopta o fanatismo de Hitler e as práticas de Estaline, exibindo até a sua própria suástica com o sinal Z, sem se preocupar com as contradições em que recai – outro traço do pós-modernismo –, ao mesmo tempo que prolifera a mentira, o ódio ao que não é russo – mormente ao Ocidente –, instilando-se um medo aterrador por entre os interstícios da vida social, além de que, e fartamente ostentadas, continua a propaganda massiva a uma só voz e em vários tons que ecoa através de toda a parafernália mediática ‘putinista’, não faltando outros ingredientes como o culto ao líder, ao corpo, a exuberância duma heroicidade de conteúdo vazio, que não vai além da morte sem sentido, da vitória fictícia, da guerra injusta.
4. Diz-se comummente que o fatalismo faz parte do modo de ser russo, donde uma ardega paixão pelo jogo nos vários sectores sociais, que, todavia, não se mobilizam com impacto contra os desvarios da mobilização militar nem se organizam popularmente contra a situação de militares feridos que regressam e da chegada dos caixões, ou das lágrimas de viúvas russas que parecem agradecer o módico óbolo que recebem como indemnização. Essa atitude passiva, submissa, dum povo de servos, onde a ideia de destino é muito forte, assim é porque viveram durante séculos sob o jugo do poder tirânico, donde uma ‘colonização interna’, como explana Alexandre Etkind no seu livro “Internal Colonization: Russia’s Imperial Experience” (2011), onde nos elucida sobre um outro enfoque da Rússia, mostrando como o Império conquistou territórios estrangeiros e subjugou o seu próprio povo, colonizando assim muitos povos, incluindo o russo. Logo no início Etkind distingue a ‘colonização’ de ‘imperialismo’, pois este não inclui necessariamente o repovoamento; a colonização "tem a ver com os processos de dominação em que os colonos completam uma migração do grupo colonizador para o país colonizado", enquanto a colonização interna "supõe a dominação culturalmente específica dentro das fronteiras nacionais, reais ou imaginárias"; tal perspectiva da colonização é nova, simultaneamente interna e externa, colonizando os outros e o próprio povo.
Todavia, aqueles que dizem que os russos não foram feitos para a democracia, erram! É o que mostraremos em próximos textos.