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Es(Ins)tabilidade

Há um pouco mais de 200 anos (9 de janeiro de 1822) na cidade do Rio de Janeiro o príncipe regente D. Pedro recusava-se a cumprir as ordens das Cortes Constituintes no sentido de regressar a Lisboa e continuar a sua preparação para a futura assunção da coroa imperial portuguesa aquando da morte do pai, D. João VI. É o célebre “Dia do Fico” que catapultará decisivamente o caminho para a cisão imperial, para a independência do Brasil proclamada a 7 de setembro seguinte.

Agora, o primeiro-ministro António Costa como que recupera, reconfigurado, um novo “dia do fico” para a política portuguesa. Resistindo aos apelos e exigências de um muito amplo coro de vozes que reclamava pela demissão do ministro das Infraestruturas, João Galamba, o primeiro-ministro disse numa comunicação ao país (na passada terça-feira) que o ministro “ficava” no seu governo. Para lá da maioria da oposição – do Chega, IL e PSD até ao Bloco de Esquerda – e da generalidade da imprensa a exigir a saída do ainda ministro João Galamba, sobressai como não atendido nesta demanda a figura do Presidente da República. Marcelo pretendia a demissão de João Galamba e o ministro, naturalmente incapaz de resistir a tamanho cerco, apresentou mesmo a sua demissão ao PM (primeiro-ministro), mas António Costa, fazendo uso das suas prerrogativas constitucionais na responsabilidade da escolha dos membros do governo, desafiou a pretensão presidencial.

O detonador da atual “crise”, o transvio – “roubo”, na versão oficial do governo – de um computador, com informação sensível, do Ministério das Infraestruturas não justificaria, por si só, o despertar das paixões na opinião pública (sempre visado pela imprensa) nem, tão pouco, uma crise política. Ademais a ocorrência poderia nem sequer ter vindo a público. Foi a feição algo burlesca da “viagem” efetuada por este computador nas mãos de Frederico Pinheiro – o adjunto do ministro Galamba, entretanto demitido –, com agressões e polícias à mistura, que adensou a perceção negativa sobre o ministro em causa e sobre o governo por extensão, pois é suposto, como o próprio PM reconheceu na referida comunicação ao país, que no seu funcionamento o governo deverá transparecer seriedade e responsabilidade. 

Não esqueçamos, todavia, que no cerne de tudo isto está uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) que tem por missão desvendar o pesado imbróglio em que se tornou a gestão da TAP nos anos mais recentes, após a sua nacionalização. O escrutínio parlamentar, e da imprensa, sobre os casos na TAP já levaram, sabemos todos, à demissão forçada de ministros e secretários de Estado. Claramente, a nacionalização da TAP, decerto mal compreendida pela maioria dos portugueses, atento o pesado fardo financeiro em que está envolvida, sobra como o mais penoso erro na ação política desde governo.

Uma outra questão que agora emerge é a que respeita à valia das maiorias absolutas para o alcance de uma melhor e mais eficaz ação governativa. Transcorrido cerca de um ano e meio desde a tomada de posse, no quadro de uma legislatura de quatro anos e meio, o presente governo liderado por António Costa, marcado por uma sucessão de episódios negativos, muito tem contribuído para descredibilizar as virtudes das maiorias parlamentares absolutas de um só partido. 

Na Europa, estas maiorias são uma raridade, prevalecendo o suporte parlamentar dos governos através de coligações partidárias, algumas agregando mesmo parceiros com filosofias políticas fortemente diferenciadas (no Reino Unido atual, outra exceção, uma ampla maioria conservadora no Parlamento tem também, curiosamente, alimentado uma forte instabilidade governativa). Ainda sobre as aparentes escassas virtudes das maiorias absolutas unipartidárias, a “geringonça” parlamentar de anos recentes, e goste-se ou não das políticas que suportou, viabilizou um governo (entre 2015 e 2019) que exibiu bem mais coesão do que o atual.

O exercício do poder em altas funções é certamente deveras desgastante. António Costa já leva quase oito anos como primeiro-ministro: é muito e já parece de mais. Atrair interessados para integrar um governo também não estará fácil, perante a escassa compensação económica imediata e a sujeição à devassa da vida privada pela imprensa.

Muito provavelmente, em futuras eleições, numa escolha mais à direita ou mais à esquerda, a maioria dos portugueses premiará soluções governativas com apoio parlamentar diversificado (coligação formal ou “informal”). Através de uma fiscalização parlamentar cruzada, pelos parceiros de “coligação”, menos dada à bonomia, estimarão os eleitores que será possível atacar melhor a ligeireza ou os potenciais dislates governativos.

* Doutorado em História Contemporânea pela Universidade de Coimbra

Destaque:

Muito provavelmente, em futuras eleições a maioria dos portugueses premiará soluções governativas com apoio parlamentar diversificado

Amadeu J. C. Sousa

Amadeu J. C. Sousa

5 maio 2023