Recupero a leitura que nos últimos dias não tive a oportunidade de fazer. Fixo-me no apagão do vídeo em que as três maiores figuras do Estado surgem a dissertar à maneira alcoviteira e maledicente sobre quem não concordou com a ida do Presidente do Brasil ao Parlamento, exactamente no dia da comemoração da data da revolução de Abril. Não foi a primeira vez que uma câmara de televisão captou som e/ou imagem de responsáveis políticos que se deixaram distrair, aqui e noutras geografias do planeta.
As personalidades comportaram-se como alguém que diz por trás o que nega pela frente, indiferentes aos registos. E ficamos a saber melhor o verdadeiro carácter dos nossos representantes e dirigentes a acrescentar ao que já sabíamos relativamente às apreciações contrárias da mesma figura sobre o mesmo assunto. Ora, isso não é bom. Desde logo, porque causa dúvida e insegurança e, além do mais, confunde. Diz-se com ligeireza por trás o que pela frente se dá a entender ser conversa honrada, séria e verdadeira. Verbaliza-se em off uma coisa que depois se nega em on. A vida tem destas coisas: pode afirmar-se a pés juntos que algo é mentira, e assim se torna a verdade oficial, mas a prova cabal pode aparecer para esclarecer e revelar toda ou parte da verdade. Alguns acham que a culpa disso são os jornalistas e outros trabalhadores da comunicação social, nunca eles próprios!
Graças a estes, a verdade esclarece e incomoda. No caso, incomodou mesmo ao ponto da reacção ter sido a censura com o apagão do vídeo em causa. Ficaram cópias e as ondas de repercussão. E tramados os actores da peça. O Presidente da Assembleia da República ficou mal no filme. Ainda mais por não ter admitido e dar a entender, com o processo de averiguações que entretanto instaurou – é assim que o vejo –, que a coisa terá sido uma mentira. Vai ser difícil confirmar que o som e a imagem não são autênticos… Mas, chamuscados ficaram também as restantes figuras de Estado que lá estavam na rodinha a maldizer, uma mais activa do que outra, sendo certo que isso não define a cena. Tenho para mim que o espectáculo, não tendo sido nada bom, antes pelo contrário, definiu um culpado e esse não é certamente o homem ou a mulher da câmara. Está bem identificado o actor principal que, aliás, não fez bom uso do seu papel. Tenha sido ou não autorizada a captação de som e imagens, o que releva são as palavras proferidas. O apagão pode ter sido determinado, mas nada apaga "a realidade através da semântica", para utilizar palavras do líder do Iniciativa Liberal.
Há impressões que são aceitáveis num líder partidário, mas que ficam mal, para além de serem impróprias, a uma personalidade que deve manter uma postura de urbanidade e independência. Se o responsável não fizer por isso está a colocar em causa tanto a sua pessoa como a função; e é com propriedade que se pode dizer, tendo em conta a sua posição na hierarquia, que ao proceder assim se torna "líder de facção", como o Iniciativa Liberal caracterizou os comentários proferidos pelo Presidente da Assembleia da República.
Estranha-se que os portugueses não confiem nos políticos? Sem razão. De tantos casos que têm vindo a lume, o sentimento tem-se vindo a entranhar. Cada novo caso que acontece consolida o sentimento e é uma machadada mais na credibilidade dos representantes e eleitos do Povo. A gravidade é ainda maior se se considerar que, como foi o caso, o sucedido ter sido gravado no dia em que mais se falou de cravos, de liberdade, de democracia e responsabilidade.
Discriminar um partido não é democrático, qualquer que ele seja. Se tem legitimidade à luz da lei, se representa uma parte do povo, há que ter tento e respeito. Sempre que isso não acontece, quem procede à revelia do povo, não dignifica o Parlamento. A democracia não é património de ninguém nem de nenhum partido; não é propriedade nem da direita nem da esquerda do espectro político. Não há democracia quando se discriminam minorias, ainda que residuais. Quando se afasta uma força partidária de participar em determinados eventos é sinal de que o sistema político está a claudicar. A prepotência não se conjuga bem com democracia. E aceitar passivamente este tipo de desmandos é, para além de uma certa cobardia dos eleitos, desrespeitar os eleitores. A democracia fica em pantanas quando, em vez de ser um amanhecer, se parece cada vez mais com um ocaso.