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O melhor é ir pela sombra

Há dias, numa livraria de aeroporto, deparei-me com uma edição especial da revista Le Monde sobre Hannah Arendt (1906-1975). Simultaneamente marcada por um incansável otimismo e um profundo desespero, a obra desta filósofa alemã de origem judia é também uma viagem pelas raízes do mal, a partir das experiências dos totalitarismos nazi e comunista. Quando Hitler ascende ao poder – depois de passar uma semana na cadeia –, trilha os caminhos do exílio com uma primeira paragem por Paris (1933-1940). Em janeiro de 1941, após ter perdido de forma trágica o amigo Walter Benjamin – outro grande pensador do século XX – apanha um comboio em direção a Lisboa, de onde embarca para Nova Iorque.

Três décadas mais tarde, a 8 de dezembro de 1975, no seu elogio fúnebre, no Memorial Chapel, em Riverside, o filósofo Hans Jonas descreveu-a de forma lapidar: “Havia nela uma intensidade, uma direção interior, uma procura instintiva de qualidade, uma busca experimental da essência, uma forma de ir ao fundo das coisas que espelhava uma aura mágica à sua volta. Sentia-se que tinha uma determinação tão absoluta em ser ela própria quão grande era a sua sensibilidade.” De facto, sempre houve em Arendt esse profundo desejo de compreender a natureza humana.

Em 1961, a convite do New Yorker, desloca-se a Israel para cobrir o processo de um dos mentores do Holocausto. Dessa jornada nasce “Adolf Eichmann em Jerusalém. Um relatório sobre a banalidade do mal” (1963). “Apesar de todos os esforços da acusação, toda a gente podia ver que aquele homem não era um monstro”, escreve. Era um ser ordinário, pai de família, que se entregou de corpo e alma a uma causa horrenda, com a banalidade burocrática de um empregado de escritório. Decidira, como muitos outros, deixar de pensar por si próprio, submeter-se ao coletivo. “É na ausência de pensamento que o mal mergulha as suas raízes”.

A reflexão sobre a banalidade do mal foi, por vezes, mal-entendida. Embora não passasse pela cabeça de Arendt minimizar a barbárie nazi, não escapou a críticas mordazes. Em 1966, o semanário Le Nouvel Observateur chega mesmo a publicar vários excertos da tradução francesa, associados à tomada de posição de um conjunto de intelectuais, com a seguinte interrogação: “Será Hannah Arendt nazi?” De facto, comprazemo-nos, de forma maniqueísta, em repartir os homens e as instituições entre bons e maus, sem mais. Amiúde, qualquer outra postura causa indignação coletiva. Mas a realidade é bem mais complexa e a essência do mal mais profunda.

“Da humanidade em tempos sombrios” é o título de um discurso que Arendt proferiu, em 1959, em Hamburgo, aquando da atribuição do Prémio Lessing. “Trazer racionalidade e luz ao caminho sombrio que a humanidade teima em trilhar” é precisamente a proposta de um documentário de Lucas Costanzi que estreia em Braga no início do próximo mês. Há um par de anos, descobri a Psicologia Analítica de Carl Jung (1875-1961). O que posso dizer é que comecei por encontrar pontos de contacto com alguns dos meus sociólogos prediletos e acabei por descobrir uma ferramenta de análise poderosíssima, quer a título pessoal, quer para a compreensão dos fenómenos sociais.

Na quinta-feira 6 de abril, às 21h30, na sala de cinema do GNRation, estreia "Teatro das Sombras", uma produção da Sabujo Filmes com os testemunhos de uma dezena de psicólogos clínicos e analistas junguianos dos dois lados do Atlântico. O documentário, que conta com o patrocínio da Academia de Psicologia Analítica, fundada há uma década em Braga, é um convite para olharmos para a(s) nossa(s) sombra(s). A patologia dos tempos modernos não é a repressão, mas a depressão. A pressão destrutiva não vem do outro, provém do interior, lembra-nos Byung-Chul Han (2018), numa das suas reflexões sobre o paradigma digital. Em tempo de redes sociais, bolhas informativas e polarização sociopolítica, este filme faz-nos viajar entre fenómenos sociais e psique humana, entre o que Jung apelida de sombra coletiva e individual. Já o vi o duas vezes.

Manuel Antunes da Cunha

Manuel Antunes da Cunha

Manuel Antunes da Cunha

DM

25 março 2023