A Quaresma é um período extremamente importante na vivência litúrgica. Por isso, deveria ter efeitos práticos na vida das comunidades e dos cristãos. Infelizmente, não é isto que se verifica. De facto, os tempos que vivemos parecem ser mais favoráveis a uma vivência rotineira e conservadora das cerimónias. Assistimos a muitos sinais exteriores que, por não serem acompanhados por um compromisso de vida, fazem com que a Quaresma pareça um tempo igual a tantos outros.
Com a mensagem deste ano, o Santo Padre pretende desinquietar-nos, fazer-nos acordar da normalidade do “sempre igual” e levar-nos a assumir compromissos que permitam tornar a nossa vida mais diversificada.
Irei retirar duas ou três ideias desta mensagem, desejando contribuir para tornar este tempo favorável, diferente e com compromissos de conversão.
O Santo Padre não desliga este tempo do percurso sinodal, porquanto o Sínodo deve nortear toda a vida eclesial. A determinado momento, diz-nos: “O nosso caminho Quaresmal é ‘sinodal’, porque o percorremos juntos pelo mesmo caminho, discípulos do mesmo Mestre”. Habitualmente, o primeiro domingo da Quaresma apresenta-nos o evangelho das tentações de Jesus – nas Suas tentações, as nossas tentações. Hoje, com toda a simplicidade, devemos referir que a principal tentação do cristão consiste em seguir outros mestres. Realmente, há outras doutrinas e outras mensagens que podem parecer-nos mais sedutoras, porque nos permitem aderir mais facilmente, e de forma imediata, àquilo que nos promete mais felicidade. No entanto, devemos ter a capacidade de definir quais são, realmente, as nossas verdadeiras prioridades. Cristo deve ser o nosso Mestre, pois, à Sua luz, ser-nos-á mais fácil interpretar aquilo que nos vai seduzindo. Se acolhermos Cristo como Mestre e experienciarmos a alegria de sermos seus discípulos, percorremos juntos o mesmo caminho.
Assim, a Quaresma terá de ser pensada como um tempo de introspeção, um tempo propício a uma profunda reflexão sobre o caminho que percorremos. Não se trata, somente, de uma atitude de fidelidade ao Mestre, mas também de coerência perante os homens. Queiramos ou não, este é o primeiro problema da Igreja. Na verdade, ela só terá credibilidade mediante o testemunho daqueles que se consideram seus membros. Esta é uma tarefa para todos e, portanto, ninguém poderá sentir-se dispensado dela. A Quaresma é, na sua essência, um tempo de conversão e de mudança.
Interiorizada esta atitude, importa, na lógica do caminho, tomar outra decisão, como nos lembra o Papa: “O caminho sinodal está radicado na tradição da Igreja e, simultaneamente, aberto para a novidade. A tradição é fonte de inspiração para se procurarem estradas novas, evitando-se as contrapostas tentações do imobilismo e da experimentação improvisada”. Se tivermos de testemunhar fidelidade, esta deverá revelar-se criativa e suscitadora de novidade. Com facilidade, instalamo-nos e praticamos o imobilismo de quem julga ter chegado à meta. Contudo, o caminho é sempre um convite a expandir horizontes e a acreditar que algo de novo pode acontecer, pois nada é mais triste do que uma vida sempre igual. Portanto, a Quaresma, como compromisso diário, deverá tirar-nos da apatia e do marasmo e apresentar-nos razões novas para vivermos de um modo diferente, com outro ardor e convicção, contrariando os tempos de hoje, em que assistimos a muita paralisia espiritual e descompromisso eclesial.
Esta luta contra o imobilismo pode revelar-se muito exigente, e a caminhada da vida pode ser uma subida íngreme. A isto se refere o Papa na sua mensagem, aludindo às dificuldades sentidas no percurso que teremos de percorrer para chegar ao cimo do Monte Tabor. A ideia de melhorar a vida e o compromisso eclesial pode parecer-nos difícil, até mesmo penitencial. Contudo, aceitar a face dura do cristianismo, com momentos mais complicados de dor e sofrimento, é certeza de que caminhamos, apesar de não podermos escolher o percurso. Sabemos que nem tudo são planícies; ainda assim, o que importa verdadeiramente é subir e encarar a meta como o último objetivo a cumprir, porque o verdadeiro discípulo não se deixa ficar pelos primeiros passos. Ele sabe que, à semelhança do seu Mestre, terá de pegar na cruz da sua vida e na da Igreja. Não deve fugir, pois a única atitude cristã consiste precisamente em abraçá-la e caminhar com alegria, assumindo o Calvário como uma passagem para a ressurreição. Não será isto que, nesta hora de purificação, é pedido aos cristãos?
Caminhando com Cristo, vencendo o imobilismo e subindo ao Tabor, encontraremos forças “para sermos artesãos da sinodalidade na vida ordinária das nossas comunidades”.
Na verdade, a Quaresma não pode limitar-se a ser um mero acontecimento espiritual; ela é, também, oportunidade para os cristãos e as comunidades reforçarem o compromisso sinodal.
É esta a tarefa que Deus nos confia agora. Por isso, não podemos abandonar o caminho que só agora foi iniciado. Não aceitemos o imobilismo mas mostremos vontade de subir, sinal da mudança de vida que queremos interpretar. Depois, continuemos o percurso sinodal, convencidos de que sem artesãos apaixonados e na quotidianidade da vida, a sinodalidade tornar-se-á uma palavra sem qualquer incidência no real da vida.
Autor: D. Jorge Ortiga