1 - No numeramento de 1527-32, uma espécie de censo pioneiro no nosso país, foram contabilizados 280.500 fogos em Portugal, extrapolando-se a partir deste dado que a população portuguesa de então oscilaria entre os 1,1 e os 1,4 milhões de habitantes (estimando-se, assim, uma média de 4 ou 5 pessoas por fogo, respetivamente).
Agora, quinhentos anos depois, a população do nosso país multiplicou-se por sete ou oito vezes, enquanto o número de casas se multiplicou por mais de vinte vezes (cerca de 6 milhões de alojamentos clássicos, ou seja, moradias e apartamentos, o que significa menos de 2 pessoas por fogo). Mas hoje, não obstante a proporção bem mais favorável da relação entre a população e o edificado residencial, as casas não bastam, estão inacessíveis para boa parte dos agregados familiares, mormente os mais jovens ou os “núcleos familiares” individualizados. Por força do cerco económico gerado por persistentes salários médios baixos (bem menores do que o observado dez ou vinte anos atrás, e sobretudo se a comparação for estabelecida pelo número de anos de trabalho requeridos para pagar a compra de uma habitação média) muitos jovens mantêm hoje as amarras ao lar dos progenitores muito para lá do razoável (abandonam a casa dos pais pelos 34 anos, quase o dobro da idade média observada na Europa nórdica). Comprar casa está muito difícil e arrendar não se mostra muito mais apetecível, não obstante alguns malabarismos que senhorios e inquilinos intentem, por vezes, para formalizar contratos mais engenhosos do que o efetivamente expresso no texto, fintando assim a pressão do fisco (na proposta agora esboçada pelo governo aventa-se a possibilidade da redução do imposto sobre o valor das rendas a receber pelo senhorio nos contratos mais longos, mas muitos duvidam da sua atratividade).
Alguma coisa era necessário fazer, porém. Depois de muito tempo à espera que o mercado resolvesse a situação, numa aparente indiferença ou impotência, o governo resolveu agir, e de forma surpreendente e até estrepitosa a reter pelas muitas reações iradas, mormente pela figura do arrendamento coercivo que o Estado admite adotar perante as casas “devolutas” (para lá da constitucionalidade, ou não, desta medida, o acerto ou a redefinição do conceito de “devoluto” será certamente esgrimido em tribunal pelos advogados de muitos proprietários). A possibilidade de subsidiar os juros, repentinamente muito encarecidos, de empréstimos à habitação mais recentes colherá decerto os favores de potenciais beneficiários, conquanto todos aqueles que não puderam – ou não ousaram, responsavelmente – meter-se na aventura de um empréstimo arriscado não apreciarão subsidiar agora com os seus impostos a preservação da propriedade alheia. Que o alojamento local, num autêntico vórtice de investimento, tem enfraquecido seriamente o mercado de arrendamento e causado a designada gentrificação urbana também é um facto. O cerco agora apontado, algo inopinado, pode perturbar decisões de investimento futuras, acusam os detratores.
Numa apreciação global, o loquaz presidente Marcelo, num comentário subtilmente verrinoso, mas assisado, assestou que as novas propostas governamentais sobre a habitação, em discussão pública, são como o melão, que "só se sabe se é bom depois de o abrir”. Veremos, pois, como o texto da lei acabará precisado e, num futuro próximo, que resultado será efetivamente colhido.
2 - Outra grande mudança está em curso neste século XXI e particularmente nos últimos anos. Portugal, um país com uma corrente emigratória multissecular, está progressivamente transmutado num país de imigração. “Exportamos” agora, sobretudo para a Europa, muitos quadros, a par de indivíduos com escolar formação mais modesta, e “importamos” imigrantes do mundo, maioritariamente para a execução de tarefas mal remuneradas, e que os indígenas consideram pouco apelativas. Precisamos de imigrantes, mas cumpre-nos acolher bem e com inteligência. O espetáculo de imigrantes a arrastarem-se em condições sub-humanas de alojamento, que nem os portugueses dos bidonvilles (bairros de lata) na França dos anos 60 do século passado, não abona para o propalado humanismo luso, nem para a suposta generosidade da nossa política de abertura ao mundo.
Autor: Amadeu J. C. Sousa