“O que é Deus? Ele é comprimento, largura, altura e profundidade”
[São Bernardo de Claraval]
Para a mística judaica, a escritura e as letras do alfabeto são “santas”, uma vez que foram traçadas pelo dedo de Deus nas tábuas da Lei. Uma das obrigações dos judeus era copiar os Rolos do Pentateuco, segundo normas rígidas que impediram reformas e inovações significativas na grafia. Esta “interiorização” da escritura era ritualizada pela tradição de fazer com que as crianças comessem, no primeiro dia de escola, doces em forma de letras do alfabeto.
No mundo árabe e no Islão, a caligrafia é a mais nobre das artes, e a beleza é percebida apenas sob a forma de recitação poética do texto sagrado ou de contemplação da sua caligrafia. Para o Islão, a caligrafia é, segundo Titus Burckhardt, “o corpo visível da Palavra divina”.
Se olharmos para o Ocidente, devemos reconhecer que também na Europa e em Itália, no início da Idade Média, o nascimento da caligrafia sobrevém sob o signo do Sagrado e do Corpo: os monges copistas eram inspirados pelo désir de Dieu e pelo amour des lettres. À caligrafia juntavam-se as miniaturas ou iluminuras. Quando um monge exercia o ofício da escritura e amanuense, no scriptorium, este mester [verdadeiro ministério] era, ao mesmo tempo, uma atividade estética, criativa e ascético-penitencial: a transcrição dos textos sagrados era uma forma de ascese [pelo ritmo de trabalho, pela necessidade de manutenção, pela duração do tempo, pela postura corporal] e nunca estava longe da oração.
Mas o nascimento da tipografia representa uma verdadeira revolução para esta cultura. Pensemos no que a invenção da máquina de escrever, do telefone, da televisão, dos computadores, da internet e, mais recentemente, da inteligência artificial, representou em termos de transformação do espaço e significado para a caligrafia, com a ameaça de destruição ou até mesmo de morte da escritura...
Mas será que a situação é assim tão dramática? Talvez não. E para demonstrar que a relação hoje entre quirografia, caligrafia e novas ferramentas tecnologicamente avançadas de escritura não é (ainda) tão dramática, eis os experimentos de Giancarlo Pavanello.
Mas quem é Giancarlo Pavanello? É um artista-poeta, um ensaísta, um amante do Logos, nascido em Veneza, a 4 de abril de 1944, e transferido para Milão em 1978.
Na sua página pessoal [www.giancarlopavanello.com] podemos ler uma sua pequena biografia. No início dos anos setenta, 1971-1975, desenvolve a solução das grafias enfáticas, com textos caligráficos numa espécie de pintura a tinta semelhanças às linguagens ideográficas, do ponto de vista ocidental, como experiências verbo-visuais, uma síntese com a escritura literária em busca da possibilidade de um ecletismo delimitado.
Em 1976 publica o volume “epigramas escritos com uma pena de pavão” e vê-se incluído no contexto internacional da “poesia concreta”, da “poesia visual”, da “poesia total”, da “nova escritura”, segundo as fórmulas de outros autores, mas distinguindo-se por se centrar no texto poético, visualizado, breve, lacónico, não sem alusões ao haiku japonês, desenvolvendo-se pouco a pouco em direção ao cromatismo, sempre preferindo um percurso pessoal e desvinculado de agrupamentos rígidos.
Apesar de se considerar agnóstico, Giancarlo Pavanello quis aceitar o desafio de preparar uma Via Sacra do Logos para celebrar o seu 80º aniversário [4 de abril].
Neste contexto, ousei propor ao artista a criação de uma Via Sacra do Logos, que logo foi acolhida com entusiasmo. A escolha operativa orientou-se para a abstração, eliminando as formas figurativas tradicionais. Uma preparação preliminar: o ditado de fragmentos bíblicos e evangélicos em latim para serem inseridos sob a forma de manuscrito nas quinze telas previstas.
O projeto dirigiu-se, assim, para a criação de telas redondas, com um diâmetro de 40 cm, que, se adaptavam, pela sua natureza imediata e sem moldura, a uma espécie de neo-primitivismo imaginado nos grafittis das modernas catacumbas, refúgios de uma desumanização distópica, que se espera apenas imaginária. Previa-se uma exceção para a XIIa estação, com dimensões de 40x40 cm, porém, Giancarlo Pavanello teve uma nova intuição: completar a obra com cinco partes quadradas, sublinhando uma pausa no final do crescendo de humilhação, escárnio e sofrimento de Cristo, vivido com heroísmo e dissidência.
O resultado é uma Via Sacra extraordinária, comovente e excecional, repleta de paixão e amor, com uma escrita inquietante e bela, profundamente mística, na qual o Logos é o Verbo, a escritura, a poesia, a arte e a beleza, finalmente, que salvará o mundo.
A Via Sacra do Logos na sua primeira versão pode ser vista e contemplada na exposição Global Visual Poetry, organizada por Raffaella Perna, dentro do Dicastério para a Cultura e a Educação, presidida pelo Cardeal José Tolentino Mendonça, no Vaticano.
A segunda versão da Via Sacra do Logos e todo o percurso artístico e literário de Giancarlo Pavanello pode ser visto agora em Braga, capital Portuguesa da Cultura, a partir do dia 21 de Março de 2025 até à Páscoa 20 de Abril de 2025.
A exposição reúne mais de 300 obras do artista poeta italiano em três locais representativos da fé e cultura bracarense: Zet Gallery, Museu Pio XII e Biblioteca Municipal Lúcio Craveiro da Silva.
A organização é da inteira responsabilidade da Zet Gallery e conta com o apoio e patrocínio da Comissão Organizadora da Semana Santa de Braga e do Museu Pio XII e da Biblioteca Municipal Lúcio Craveiro da Silva. A curadoria da Exposição deve-se a Helena Mendes Pereira e o momento inaugural será assinalado com uma procissão poética protagonizada pela CTB – Companhia de Teatro de Braga.
Mons. Mário Rui de Oliveira
Braga, março de 2025