Amigos do peito e amigos da onça
Se, segundo os dicionários a palavra amizade significa estima, dedicação, simpatia, companheirismo e bondade, nos tempos que correm ela já pouco existe ou anda mesmo ausente do caráter e da idiossincrasia da maioria das pessoas; e, assim, podemos dizer que o amigo do peito doutras eras se transformou no amigo da onça ou, como diz o povo na sua imensa sabedoria, amigos, amigos, negócios à parte; e se o amigo do peito dá a sua camisa pelo amigo, o amigo da onça veste a camisa que retira ao amigo do peito.
Ademais, quando nos referimos a alguém como um amigalhaço, obviamente que não queremos nem devemos dizer desse alguém que é um amigo; e, muito menos, que é um verdadeiro amigo, porque na base da sua aceitação e doação o amigalhaço não passa de ser alguém que nos segue, nos acompanha, longe das regras do compromisso e da cumplicidade, sem que na sua forma ou no seu pensamento exista companheirismo e criticismo.
Não resisto a transcrever, de memória, o soneto de Camilo Castelo Branco sobre a temática da amizade:
Amigos cento e dez ou talvez mais
Eu já contei! Vaidades que eu sentia!
Pensei que sobre a terra não havia
Mais ditoso mortal entre os mortais.
Amigos cento e dez! Tão serviçais.
Tão zelosos das leis da cortesia
Que eu já farto de os ver me escapulia
Às suas curvaturas cervicais.
Um dia adoeci profundamente.
Ceguei! Dos cento e dez houve um somente
Que não quebrou os laços quase rotos.
«Que vamos nós (diziam) lá fazer?
Se ele está cego não nos pode ver.»
Que cento e nove impávidos marotos!
Pois bem, os tempos consumistas, hedonistas, relativistas e positivistas que vivemos não são favoráveis ao investimento na amizade e na prática de fazer amigos; contrariamente aos benefícios que os especialistas da matéria (psicólogos, psiquiatras, sociólogos) apontam resultantes de termos e fazermos amigos.
Assim, nesta lógica, são imensos os benefícios que podemos recolher da prática da amizade, seja para a nossa sanidade mental, seja para a nossa própria sobrevivência; e, por isso, as saídas, os telefonemas, os almoços, os jantares, as passeatas ajudam-nos sobremaneira a recuperar mais rapidamente, por exemplo, de um desgosto, de uma doença ou mesmo de uma cirurgia.
Também a amizade, tal como o amor, só se alimenta e fortalece quando se tomam iniciativas de eventos, contactos regulares e uso de algumas horas, mesmo que não seja diariamente, para passear em conjunto, pois, como diz o provérbio, longe da vista, longe do coração; e ser bom ouvinte, possuir sentido de humor e as capacidades para guardar segredos e perdoar são o sal que dá gosto e tempera as relações de amizade.
Ora, a vida moderna, porque feita de pressas e desencontros, da necessidade de subir no emprego e chegar primeiro a tudo que seja de gosto e de interesse pessoal e do despoletar constante de conflitos onde a maldade, a vaidade e o egoísmo imperam, não favorece a criação de amigos do peito; e, até, as doutrinas marxistas, maoistas e trotskistas que por aí vão imperando e dominando muito ajudam à negação em fazer e conservar amigos e ao desenvolvimento de laços de amizade.
Agora, se tem amigos do peito guarde-os e estime-os como joias raras e imensamente valiosas para que, um dia, se precisar da sua ajuda, encontre pleno gozo no efetivo dom da verdadeira amizade e partilha, como na declaração de Clarice Lispector:
Um Amigo me chamou p’ra cuidar da dor dele.
Guardei a minha no bolso… e fui!
Então, até de hoje a oito.