Portugal hoje e há cem anos: a revisitação de crises, a austeridade e a proletarização das classes médias
Decorridos cerca de cem anos, Portugal, como a Europa, revivem um quadro aparentado.
A partir de 1917, Portugal passa a interveniente direto na I Guerra Mundial, na Europa, arrastando tal alteração um agravamento das condições económicas, financeiras e sociais sentidas no nosso país desde o início do conflito. Em 1918-19, a pandemia da “Gripe Espanhola” estendeu por cá as sombras da morte (cerca de 60.000 óbitos).
No decurso dos últimos dois anos e meio, sofremos igualmente uma pandemia (COVID-19) e agora, desde fevereiro último, uma guerra na Europa, ainda que territorialmente circunscrita à Ucrânia.
Nos primeiros anos da década de 1920, os males herdados da I Guerra (carência frumentária, endividamento público, inflação) repercutiam-se no desemprego, na baixa real dos salários, no depauperamento acentuado. A título de exemplo, apresentamos aqui uma tabela com a evolução salarial de alguns dos servidores do Estado nesse período, entre 1914-25.
Como se pode constatar, os escalões remuneratórios mais baixos foram então os mais protegidos da elevada inflação. A alienação das classes médias, então como hoje em boa parte alimentadas pelo Estado, e designadamente dos militares, terá mesmo contribuído para a criação de um clima favorável à irrupção do golpe de estado do 28 de Maio (aqui em Braga, três escassos dias antes do golpe, um dos protagonistas locais revela anonimamente a este DM que o facto de o governo do sr. António Maria da Silva ter aumentado recentemente as subvenções dos militares não evitará que o mesmo caia sob um golpe militar em preparação). A Europa do tempo vivia, relembremos, uma onda de revoluções fascistas.
Os efeitos da atual guerra da Ucrânia, todos o sabemos, atravessam-nos o quotidiano, ainda assim, por agora, sem marcas de sofrimento comparáveis com o observado entre 1914-18 e o pós-guerra de então.
Tal como há cem anos, observamos que são as classes médias quem hoje mais vê cair o poder de compra. O caminho da proletarização desenhado para as classes médias do funcionalismo público pela política salarial deste governo (que há muito rompeu com o mantra da “viragem da página da austeridade”) potencia, porém, insisto, uma desqualificação dos serviços do estado, mediante a deserção dos quadros que se deixem seduzir pelo setor privado ou pela emigração (caso mais candente no SNS). Enfraquece-se assim, por consequência, o estado social. As classes médias do setor privado, por seu lado, são igualmente vítimas de um IRS pouco amigo e dos demais impostos. A agravar este quadro, emerge o “disparo” nos juros do crédito à habitação, facto ao qual o governo pouco pode contrapor.
Há ainda as consabidas perdas dos reformados. Todavia, é forçoso reconhecer que, hoje como há um século, os grupos sociais mais pobres são, iniludivelmente, os mais ameaçados pela inflação.
A atual conjuntura internacional é difícil e marcada pela incerteza. O governo vive assombrado pelo fantasma da dívida pública (um problema, deveras) e para o enfrentar reconduz-nos para uma nova austeridade global, escavando na crise. Num contexto de uma inflação herdada que rondará em 2021-22 os 10%, os aumentos da função pública conectados com este período (que induzem em parte o guião para o setor privado, relembro) estendem-se desde os cerca de 8/10% (protege-se, e bem, os mais pobres) até aos minguados 3% (2021 e 2022) para quadros no cimo da carreira (perda anual de 1 salário). E o previsto aumento de 20% para os assalariados do setor privado nos próximos 4 anos (acordo na “Concertação Social”) bem poderá vir a ser anulado pela inflação acumulada no período.
Aparentemente, uma coisa são as pessoas, outra é o país. No final de 2023, se confirmada a acentuada baixa prevista no rácio da dívida pública face ao PIB, parafraseando Luís Montenegro em 21 fevereiro de 2014 (entrevista ao JN), António Costa bem poderá sustentar que “a vida quotidiana das pessoas não está melhor… mas a vida do país está muito melhor”. E não será um mero e inofensivo plágio. A língua portuguesa propicia-se a muitas contorções, não é caro leitor?