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Pouca Terra

1 - Por cá, no nosso Portugal como na Europa, a deterioração do poder de compra das massas, conectada com a Guerra na Ucrânia, preenche os programas noticiosos. O desafio inflacionista mostra-se severo e algo inusitado. Os governos europeus, aparentemente surpreendidos pela tempestade inflacionista, arriscam soluções mitigadoras.

Segunda-feira passada, foi a vez de o governo português avançar com medidas suavizadoras da iminente tormenta social. Mediante uma verba financeira expressiva, foram revelados apoios para grupos sociais com menor rendimento e também para parte da classe média, a par de outros apoios marginais socialmente transversais. Para os pensionistas e reformados, ainda que limitando os valores num enviesamento da lei, foi decidido um incremento de remuneração invulgar. Para a generalidade dos demais portugueses, atenta a expressão da crise, os arrimos agora revelados poderão ser acomodados à condição de quase paliativo.

No corrente ano, os trabalhadores portugueses veem-se, na sua quase totalidade, fortemente perdedores de poder de compra. O governo, que através dos aumentos salariais na Função Pública, inscritos nos orçamentos de estado, sinaliza balizas para os aumentos no setor privado, estará, entretanto, forçosamente, sob pressão. O fardo da dívida pública, que nos acompanhará por muitos anos, condiciona as decisões do executivo.

Mas o áspero, paradoxal e desafiante dilema persiste. A verificar-se a continuação da degradação do poder de compra do funcionalismo público, tal acabará, necessariamente, por contribuir para a debilitação de diversos serviços estatais. É isso, relembro, que se nota com particular acuidade na área da Saúde, também no ensino – particularmente sensíveis em termos sociais –, e potencialmente noutros setores do Estado. Com a míngua tendencial dos rendimentos reais do funcionalismo médio e do mais qualificado, começam a escassear candidatos para lugares colocados a concurso público, enquanto um número crescente de quadros “efetivos” do Estado, nas áreas com mais oferta concorrencial no mercado de trabalho, foge para o setor privado ou para o estrangeiro (em nome da transparência, saiba o leitor que quem escreve estas linhas é professor no ensino público).

Quanto à posição da Europa face à Guerra da Ucrânia, não me resta senão repetir-me, para lembrar da importância do apoio europeu a Kiev – vítima de um ignóbil ataque que fere gravemente o Direito Internacional – na placagem do expansionismo russo, que, inexorável na sua voracidade histórica, parece teimar que tem pouca terra.

2 - Não obstante vivermos numa “aldeia global” (H. Marshall McLuhan), onde se projetam afinidades civilizacionais, a emoção da opinião pública relativamente aos dramas internacionais ainda releva muito de forma inversamente proporcional à distância.

Nos longínquos Paquistão e Bangladesh, terríveis inundações submergiram recentemente grande parte do território nacional (cerca de um terço, no Paquistão), causando elevado número de mortos e milhões de desalojados. Populações já muito pobres ficaram agora deveras mais fragilizadas. Queixam-se justamente estas populações que os desastres climáticos decorrem em grande parte da poluição originada mais a norte por países intensamente industrializados. Todavia, regionalmente a poluição também aumenta, decorrente da progressiva industrialização e do acelerado crescimento da população.

A explosão demográfica de todo o subcontinente indiano será mesmo uma causa maior da persistente pobreza geral nesta região. Por 1900, a população da Índia rondava os 250 milhões, enquanto hoje no mesmo território (agora, Índia, Paquistão e Bangladesh) o total se aproxima dos 1800 milhões. As imensas populações rurais destes países dispõem, decididamente, de pouca terra.

* Doutorado em História Contemporânea pela Universidade de Coimbra

Nota – A minha última crónica (“Ensolarados”, 26/8) saiu com um erro na edição impressa do DM, cedo corrigido na versão online. Na cidade de Braga, o aquecimento deriva, entre outras coisas, da “diminuição” da reflexão da luz solar (e não da “intensificação” como saiu impresso).


Autor: Amadeu J. C. Sousa
DM

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9 setembro 2022