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Aparenta ter mais de 100 anos e está — sozinho! — na maca de um serviço de urgência.
Um saco com medicamentos pousa sobre o lençol. Desidratado e muito magro, respira com dificuldade.
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Após o atendimento, ligam para o telefone de contacto. O paciente deverá ter alta depois de hidratado. Tanto mais que permanecer no hospital aumenta o risco de infecções.
Do outro lado da linha, a família responde ter partido de férias durante uma semana. Aquele ser humano tinha sido «despejado» no hospital. E por lá iria permanecer, abandonado.
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No norte do país, árvores e paragens de autocarros estão cheias de mensagens.
Por aquele meio, um avô envia um abraço aos seus netos que não vê há seis anos. Motivo? Um alegado desentendimento com o pai dos menores.
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Numa altura em que as temperaturas sobem em todo o planeta, ainda haverá algum «lugar» frio no mundo?
Há: o coração humano. E — acreditem — o «gelo» dos corações destrói mais que as chamas que, nesta época, devoram as florestas.
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É certo que a chuva não cai, a água não escorre e a seca é extrema, severa.
Caso para perguntar, parafraseando Sá de Miranda e António Lobo Antunes: «Que fazer quando tudo arde?»
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Ardem as paisagens onde medraram os sonhos da nossa infância.
Ardem os trigais desamparados. Ardem as serranias descuidadas.
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E arde — em pastos de rancor e ressentimentos — a alma deslavada de uma humanidade cada vez mais perdida.
Arde, em série ininterrupta de «ignições» letais, muito do progresso tecnológico que se «aditivou» irrefragavelmente aos nossos comportamentos.
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Archie Battersbee terá participado no «blackout challenge», um jogo, difundido pelas redes sociais, em que se aperta o pescoço com uma corda até perder os sentidos.
Foi neste estado que os pais o encontraram a 7 de Abril. Nunca mais recuperou. A morte cerebral foi decretada e as máquinas desligadas, a 6 de Agosto. Todos nós «ardemos» de indignação.
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O mundo está a «arder» com a maldade, com o destempero da linguagem, com os julgamentos apressados e impiedosos, com a fome de muitos e os gastos megalómanos de tantos.
O mundo «arde» pela globalização da indiferença, pelo egocentrismo que não se compadece do sofrimento alheio, pela busca dispendiosa da «felicidade de curta duração».
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É preciso esfriar o que está a arder e fazer arder o que está cada vez mais frio: o coração humano (cf. Lc 24, 32).
Precisamos não só de passar pelas pessoas, mas também de parar junto das pessoas. Para lhes falar e — não menos — para as escutar, abraçar. Ainda conseguiremos «descongelar» o coração?
Autor: Pe. João António Pinheiro Teixeira