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OS DIAS DA SEMANA Quanto menos soubermos, melhor dormimos

O enredo principal do livro, poderiam alguns dizer após uma leitura superficial, resumir-se-ia a uma prolongada e feroz batalha entre bandidos, por um lado, e bandidos, por outro. Ou, se se preferir usar uma classificação citada pelo autor, a uma luta implacável opondo “bandidos e ladrões” a ladrões e bandidos. Mas a obra é, evidentemente, muito mais do que isso. Desde logo, porque há também os que enfrentam os nem sempre desavindos “bandidos e ladrões” de ambos os campos, o do poder e o dos negócios. São, todavia, mal sucedidos no intento. Ou são assassinados ou surgem como culpados em enredos forjados para os afastar do combate. Não é edificante o que nos é contado em Quanto menos soubermos, melhor dormimos: Do terror à ditadura na Rússia sob Ieltsin e Putin [1], apresentado pelo autor, o historiador e jornalista David Satter, na Feira do Livro de Braga no fim-de-semana passado. O livro, agora editado em Portugal por Livros Zigurate, com tradução de Carlos Vaz Marques, é sobre a Rússia que Ieltsin entregou a Putin e sobre o que este fez com o legado. “Compreender a Rússia é na verdade muito fácil, mas precisamos de aprender a fazer o que é realmente difícil – acreditar no inacreditável”, escreve David Satter, que começou a trabalhar no país em 1976, como correspondente do Financial Times de Londres. A tarefa implica entender que a vida humana, desprovida de valor intrínseco, apenas serve enquanto “matéria-prima para os esquemas ilusórios de líderes políticos corruptos”. Isto não diferiria do que se passa em outros sítios, mas algo mais se deve acrescentar no caso russo: “Para entender a realidade russa, é necessário aceitar que os líderes russos são capazes de fazer explodir centenas de pessoas do seu próprio povo para preservarem o poder que têm. São realmente capazes de ordenar um ataque com lança-chamas num ginásio cheio de pais e filhos indefesos”. De facto, “o impossível é realmente possível”. David Satter refere-se aos atentados à bomba contra edifícios residenciais em Moscovo, Buinaksk e Volgodonsk em 1999 e ao cerco à escola de Beslan em 2004, acontecimentos tratados com minúcia no primeiro e no quarto capítulos. O crime de 1999 é aquele que o autor considera mais marcante. Tratou-se do “resultado final da deriva criminal do país liderado por Ieltsin e a chave para a ascensão de Putin ao poder”. Temendo poder ser perseguido pelas suas malfeitorias, Ieltsin quis entregar o poder a um lacaio servil. Putin era-o, mas tinha a desvantagem de ser um irrelevante desconhecido. Um drama poderia convir para lhe construir uma imagem de líder. Quando quatro prédios de apartamentos explodiram em Moscovo, Buinaksk e Volgodonsk, entre 4 e 16 de Setembro de 1999, matando centenas de pessoas, as culpas foram atribuídos a rebeldes chechenos. Putin, recentemente nomeado primeiro-ministro, anunciava a vingança. Estava, pois, digamos assim, à altura de um chefe. A segunda guerra contra a Chechénia iria começar. Só que as provas disponíveis da autoria do atentado, explica David Satter (e outras vozes também credíveis dizem o mesmo), não apontavam para chechenos, mas para a liderança do Kremlin e para os Serviços de Segurança da Federação Russa (FSB), herdeiros do velho Comité da Segurança do Estado, o KGB. No Ocidente, constata o autor, acreditou-se na explicação oficial russa, que indicava que os atentados tinham sido obra de islamitas. Não se considerou plausível a ideia de que o regime, para se manter, “poderia matar centenas de cidadãos do seu próprio país e aterrorizar a nação”. Para o autor, “essa recusa em acreditar no inacreditável teve um custo. Estropiou a política ocidental relativa à Rússia, tornando-a ingénua e ineficaz. Desde que Putin assumiu o poder, o Ocidente manteve uma imagem da Rússia sem nenhuma relação com a realidade”. As manifestações que conduziram ao derrube do presidente ucraniano em 2014 são também reportadas em Quanto menos soubermos, melhor dormimos por causa do modo como foram olhadas pelo Kremlin. “Em Moscovo, os acontecimentos na Ucrânia foram vistos como um exemplo clássico do derrube de um governo cleptocrático por uma acção popular que poderia ser replicada na Rússia”, escreve David Satter, acrescentando que a Ucrânia, tendo um regime idêntico ao que fora criado na Rússia, era mais pluralista. “Assim sendo, era essencial para a liderança russa desacreditar a revolução ucraniana. O regime escolheu o método tradicionalmente usado para distrair a população russa dos abusos dos seus governantes. Deu início a uma guerra”. Também não faltaram, como é costume, “as notícias falsas destinadas a atiçar a histeria nacionalista”, havendo na obra referências a uns quantos exemplos de mentiras ainda hoje, aliás, replicadas. O que David Satter nos conta é muito instrutivo. Quanto menos soubermos, melhor dormimos, é certo, mas a ignorância tem um custo exorbitante. O historiador e deputado Rui Tavares tem razão: este livro publicado em 2016 pela Yale University Press era essencial, “agora é imprescindível”.
Autor: Eduardo Jorge Madureira Lopes
DM

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17 julho 2022