twitter

O beijo de Marcelo

Em 1968, Rocco Morabito venceu o prémio Pulitzer com a fotografia “O Beijo da Vida”, que ainda hoje, volvidas várias décadas, sensibiliza multidões.

Provavelmente, António Cotrim, fotojornalista da Agência Lusa, não alcançará tão prestigiada distinção, mas teve o engenho e felicidade de captar um momento revelador da, ainda surpreendente, capacidade de Marcelo Rebelo de Sousa, ir espalhando afetos.

A tradicional selfie foi substituída por uma fotografia do beijo do Presidente na bebé Leonor, famosa antes de o ser, ainda na barriga da sua mãe.

Próximo? Seguramente. Espontâneo? Provavelmente. Inocente? Dificilmente.

Com este gesto Marcelo celebrou a vida. Mas sem dúvida que chamou também, uma vez mais, a atenção para a importância capital do Serviço Nacional de Saúde (SNS) - em colapso -, e dos profissionais que por ele zelam.

Vem esta nota a propósito da situação absolutamente inaceitável do encerramento de urgências de obstetrícia em vários hospitais do país, nomeadamente a do Hospital de Braga, um hospital de referência, central e de última linha.

O óbvio está assim agora à vista de todos, que assistimos estarrecidos à inapelável degradação de um serviço essencial, conquista de todos os portugueses que o desejariam forte e eficaz, à boleia de preconceitos ideológicos, mas principalmente, de erros grosseiros de estratégia, visão e de gestão.

Não obstante a conjuntura o problema é essencialmente estrutural.

A resiliência da Ministra Marta Temido durante o período pandémico que atravessamos e que a transformou, a dada altura, na estrela maior do elenco governativo, não pode encapotar as gravíssimas falhas que culminaram num conjunto de ineficiências, descontrolo e até de alarme social.

Só agora se percebeu o escasso número de médicos, mormente em algumas especialidades? Ou já nos esquecemos das promessas eleitorais não cumpridas e adiadas a este nível?

Só agora se percebeu que as regras em vigor no âmbito dos regimes de contratação pública para este tipo de profissionais são de tal forma castradoras, que inviabilizam o preenchimento de determinadas grelhas de serviço?

Só agora se percebeu que a falta de autonomia dos Conselhos de Administração na gestão das instituições que presidem é inibitória de uma gestão mais eficiente e eficaz, quando se poderia traduzir em mais e melhores resultados em saúde?

Só agora se percebeu que o SNS é “pouco atrativo” para reter os melhores profissionais - formados com dinheiros públicos - porque a grelha salarial e a progressão na carreira já não são adequadas?

Só agora se percebeu que a necessidade de recorrer a prestadores externos, vulgo “tarefeiros”, é excessivamente mais onerosa para o serviço público, como ainda potencia iniquidades e desigualdades entre os próprios profissionais?

Só agora se percebeu que existe um problema de eficiência e de acessibilidades aos serviços de saúde?

O Hospital de Braga, em concreto, foi ao longo das últimas décadas considerado uma referência no âmbito do serviço assistencial prestado. Hoje, afastado do regime das PPP (Parceria Público Privada) que permitiu, durante vários anos, um melhor enquadramento de gestão, uma maior flexibilidade e uma margem de negociação com os profissionais e outros não assegurada pela gestão pública, vê-se a braços com graves problemas de que não padecia.

Perante o caos, acenam-se com planos de contingência. Vários e sucessivos. E quando tal acontece, só pode ser sinónimo de remedeio, de opções erradas e de má gestão.

Precisamos de um SNS forte, reforçado, transformado e não apenas, como se tem dito, um SNS “para pobres e muito pobres”. Um SNS que pode perfeitamente coexistir com uma rede privada robusta, mas que, neste momento, se encontra em más condições e complemente impossibilitado de concorrer com o setor privado.

Fernando Medina deu o mote, com uma espécie de “abraço de morte” à sua colega Marta Temido, quando excluiu a possibilidade de o adensar dos evidentes problemas do SNS ser um problema de subfinanciamento.

Marcelo Rebelo de Sousa, próximo e espontâneo no beijo da vida à bebé Leonor terá, também ele, dado um pouco inocente “beijo de morte” à tutelar da pasta da Saúde?

Mário Peixoto

PS: O autor opta por escrever segundo o acordo ortográfico precedente.


Autor: Mário Peixoto
DM

DM

26 junho 2022