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A radicalidade do chamamento

A Liturgia da Palavra do próximo Domingo (XIII do Tempo Comum) permite-nos falar da vocação como uma ação de Deus que, pela sua Palavra, corta com o passado e abre horizontes novos. Dos textos (primeira leitura e evangelho) salta à vista a radicalidade do chamamento, que requer algum esclarecimento.

1. O chamamento de Eliseu. Eliseu é apresentado como discípulo e herdeiro do grande profeta Elias (1 Rs 19, 16b.19-21). Se o manto é símbolo do dom profético, lança-lo sobre alguém é sinal de investidura na missão de profeta. Agricultor em Abel-Meolá, uma aldeia da Transjordânia, a vida de Eliseu muda por completo, depois de escolhido para uma nova missão. Sendo-lhe concedido que fosse despedir-se do pai e da mãe, Eliseu despede-se também da sua anterior missão com uma refeição em que a preparação da comida exigiu sacrificar aquilo de que se servia para o bom desempenho da sua profissão: a morte de uma junta de bois, cuja carne foi assada com com a madeira do arado. A despedida da família foi o momento para estabelecer a rutura com o passado, abrindo alas ao tempo novo da nova missão a que era chamado.

2. A radicalidade do seguimento de Jesus. É no evangelho, no início da “secção do caminho” (9, 51 – 19, 27)1, que a radicalidade se afirma. Aparece articulada com o chamamento de Eliseu, mediante a referência ao arado (9, 62: “Quem tiver deitado mãos ao arado e olhar para trás não serve para o Reino de Deus”)2. A grande diferença entre a Primeira Leitura e o Evangelho é que neste não há espaço para a despedida da família. É evidente o corte com o passado, sugerindo que a entrada no Reino de Deus exige uma escolha radical e total, onde se entra “decidido, sem hesitações, sem nostalgias” (G. Ravasi, Secondo le Scritture, pp. 217-218). Trata-se de uma linguagem exagerada, à boa maneira oriental, com que Jesus pretende vincar a necessidade da inteira disponibilidade para o seguir.

Essa radicalidade manifesta-se no desapego das coisas e dos apoios materiais, à semelhança do mestre que não tem onde reclinar a cabeça, em claro contraste com as raposas que têm as suas tocas e as aves do céu que possuem os seus ninhos (9, 58); e em relação aos afetos que, sendo legítimos e preciosos, não podem constituir um obstáculo para o seguimento do Mestre. É com uma afirmação semítica forte e explosiva que o exprime: “Deixa que os mortos enterrem os seus mortos” (9, 60).

A resposta de Jesus ao primeiro voluntário que o quer seguir indica que ele não tem domicílio estável (v. 58). A segunda (vv. 59-60) mostra a urgência de anunciar o Reino de Deus. A terceira (v. 62) faz alusão à história de Elias, mas a exigência do Evangelho é maior, porque desencoraja o despedimento da família. Com esta tática, Jesus parece querer provar a seriedade da vocação daqueles que se preparam para o seguir. Por outro lado, “para compreender a urgência e a seriedade das exigências de Jesus, deve ter-se em consideração o contexto lucano. Jesus está decididamente encaminhado na via que o leva até à morte (9, 51). Quem aceita o empenho de segui-lo não deve iludir-se, mas ponderar muito bem o risco que corre” (R. Fabris, “O evangelho de Lucas”, in Os Evangelhos [II], p. 119).

Pode surpreender a radicalidade de Jesus, mas “a nossa vocação não consiste tanto em deixar para perder, mas em perder para encontrar; não é uma fanática consagração a um destino, mas a escolha de um caminho para a esperança e dentro de um desígnio que Deus traçou” (G. Ravasi, o. c., p. 215). Radicalidade e confiança exigem-se mutuamente e conjugam-se aqui de modo exemplar.

1 Mais do que um itinerário geográfico e espacial, trata-se de um caminho espiritual e teológico que o Messias vai percorrer até Jerusalém, tendo como meta a cruz e a glória. Nele marcam presença os temas maiores da teologia de Lucas: o universalismo, a oração, a atenção aos últimos e aos pecadores, o amor para com o próximo, a misericórdia para com os pecadores, etc.

2 A propósito, afirma G. Ravasi que, “o arado, símbolo do trabalho abandonado por Eliseu, torna-se sinal do novo trabalho do Apóstolo, ‘cultivador (chamando os primeiros discípulos, Jesus tinha falado de pescador) de homens’” (Secondo le Scritture, Anno C, p. 214).


Autor: P. João Alberto Correia
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20 junho 2022