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Há um tempo para tudo

Quando se escreve uma crónica mensal, acontece dissertar sobre assuntos que nos são menos familiares. É o caso destas linhas. Depois de assistir, na passada quarta-feira, na Aula Magna da Universidade Católica Portuguesa, em Braga, à conferência/debate “Infância e adolescência: trauma, assédio e abuso sexual”, não fazia, todavia, para mim sentido escrever sobre outra matéria. Nesse fim de tarde, ouvi, com especial interesse, as intervenções de Pedro Strecht e Daniel Sampaio, membros da Comissão Independente que a Conferência Episcopal Portuguesa tomou a iniciativa de criar, no final do ano transato, mas também a declaração do bispo auxiliar de Braga, D. Nuno Almeida. Ao regressar a casa, assomaram memórias com um quarto de século.

Em 1997, aquando de um estágio de observação no diário católico La Croix, assisti a algumas conferências de redação em que a questão da pedofilia no seio da Igreja francesa suscitava acesos debates. No vespertino então dirigido por Bruno Frappat, a questão não residia em saber se um órgão de comunicação confessional devia ou não tratar uma matéria tão sensível. As dissensões diziam antes respeito ao ângulo de análise, ao peso dos testemunhos, ao anonimato das vítimas, à tipologia dos especialistas consultados, ao papel da hierarquia, à eventual designação dos agressores, etc. Passados uns tempos, foi publicada uma série de reportagens de um profissionalismo sóbrio e corajoso, mas o conteúdo desagradou profundamente a alguns assinantes. Cartas de uma singular virulência chegaram à redação, então situada a dois passos do Pont de l’Alma.

Como faz sempre questão de lembrar Daniel Sampaio, a ocultação e minimização são estratégias recorrentes das hierarquias no intuito de evitar este tipo de crises reputacionais, mas também não deixa de ser um subterfúgio adotado por outros membros das instituições quando um escândalo vem a público. Por outro lado, é hoje sabido que os protocolos adotados no acolhimento deste tipo de vítimas não deixam grande margem para manipulações, pelo que a esmagadora maioria dos testemunhos que passam pelo crivo de comissões constituídas por profissionais competentes são fidedignos. O que de pior pode então acontecer a uma vítima é que ao trauma do assédio e abuso, perpetrados na esfera da intimidade, se some a indiferença pública, o silêncio ensurdecedor ou até mesmo a refutação do seu estatuto.

A pedofilia não é apenas um problema da Igreja, mas uma questão social, ocorrendo em muitas outras instituições e, sobretudo, no seio da família e dos círculos mais próximos. Nada tem a ver com o celibato dos padres. Em abalos sísmicos desta natureza, corre-se ainda o risco de tomar o todo pela parte ou ainda de se cair no exagero de rotular como abuso o que não passa de uma simples manifestação de carinho. Não havendo nada que seja infalível, embora os riscos sejam aqui bem mais reduzidos do que geralmente se quer fazer crer, pode igualmente acontecer que a reputação de um inocente fique indelevelmente manchada. E poderíamos continuar por aí adiante desfiando considerações que nunca se devem perder de vista, mas que não podem nunca negar a dimensão do problema, nem emparedar os testemunhos de vítimas a braços com traumatismos profundamente enraizados.

Hoje – e sempre que se sentirem preparadas para tal – é mais do que tempo de dar a palavra às vítimas, de ajudá-las a reconstruir-se, na medida do possível. Que possam ouvir da boca de profissionais competentes, mas também de uma sociedade doravante bem mais atenta, que não têm culpa do que lhes aconteceu. Para a Igreja, é tempo de “pedir perdão”, de acabar de uma vez por todas com a “conspiração do silêncio”, de instaurar uma “tolerância zero” e de se dotar de “instâncias fiáveis”, parafraseando o discurso justo e incisivo de D. Nuno Almeida. Ao regressar a casa nesse final da tarde, rememorando o que se dizia há 25 anos, pensava em quão lentos fomos em reconhecer publicamente a nossa responsabilidade individual e institucional – mas é sempre tão fácil falar retrospetivamente – e quanto caminho nos resta ainda percorrer.


Autor: Manuel Antunes da Cunha
DM

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21 maio 2022