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A (nova) Volta ao Mundo em 80 dias

Foi há quase cento e cinquenta anos (1873) que o escritor Júlio Verne, que durante gerações alimentou o imaginário, a sede do fantástico e inesperado de muitos jovens, publicou a célebre obra “A Volta ao Mundo em 80 dias”. Partindo de Londres, acompanhado pelo seu criado, um aristocrata inglês retorna à sua cidade transcorridos uns exatos oitenta dias, numa viagem plena de imprevistos e aventuras pelas sete partidas do mundo (Egito, Índia, China, Japão, Estados Unidos,…), cumprindo assim uma prévia aposta efetuada no seu Clube. Fernão de Magalhães e Sebastião del Cano, que por mar haviam pela primeira vez circundado a Terra (1519-22), passavam, pois, a ficar largamente atrasados no respeitante à rapidez na execução de uma “assemelhada” façanha.

Hoje, o imaginário ficcional dos jovens preenche-se de modo bem diverso, sabemo-lo todos, desmultiplicando-se, em boa parte, pelas diversas ofertas cinematográficas ou por atividades e jogos informáticos multimédia. Ainda assim, importa ler – lembrarei teimosamente, não fosse eu professor – pois o sucesso escolar dos alunos passa muito por aí.

Não desista, caro leitor, como decerto já antecipou não vou perorar sobre a literatura juvenil, nem tão pouco é essa a minha especialidade. Mas que o mundo deu uma grande volta nos últimos 80 dias, concordaremos decerto. Obviamente, venho arrastá-lo para uma breve reflexão sobre a política internacional. É um facto, a Rússia originou uma grande reconfiguração da geopolítica mundial no decurso das últimas semanas, em cerca de 80 dias. Argumentando com a “traição” do governo da Ucrânia, que porfiava em exorbitar da tradicional esfera de influência do poderoso e imenso vizinho a leste, a Rússia, assumindo-se indignada com o progressivo alastrar da mancha dos países NATO até às suas fronteiras, decidiu invadir a antiga república da URSS, aparentemente confiando numa rápida – e, supostamente, bem-vinda pelos ucranianos – anexação.

Suportado numa generosa e muito prestimosa assistência financeira e militar por parte das grandes potências da Europa, e dos EUA em particular, o nacionalismo dos ucranianos, a capacidade das suas Forças Armadas, têm tornado, até ver, muito difícil a materialização plena dos objetivos imperialistas russos. É dado como um ponto assente que a Ucrânia, contrariamente ao que pretendia o seu governo e o prescrito na sua Constituição, não será, entretanto, acolhida no seio da NATO, pelo menos num horizonte temporal previsível. O realismo da política internacional, assente, ademais, na constatação de que a Rússia subsiste como a maior potência nuclear do mundo, impõe o devido respeito e cautelas (e, também por isso, esta guerra não poderá terminar com uma humilhante derrota, em toda a linha, da Rússia). Porém, a Ucrânia que resiste transfigurou-se no posto avançado de defesa das democracias liberais da Europa. Se fosse anexada com toda a ligeireza e rapidez pela Rússia, nada garante que a voracidade imperial deste último país parasse por aí. Todavia, paradoxalmente, e talvez não tanto assim para os mais atentos, as pretensões de Putin – uma espécie de novo czar de um país que nunca conheceu a democracia liberal aberta – de travar a expansão da NATO nas linhas de fronteira da Rússia redundaram num efeito inverso. A Finlândia e a Suécia, atemorizadas, acabam de solicitar a adesão à NATO, o que deverá tornar-se uma realidade a breve prazo não obstante as presentes objeções turcas. Uma espécie de nova “cortina de ferro” ficará doravante a separar a Rússia da generalidade dos países europeus. E nem sempre foi assim, cumpre dizê-lo. A partir do século XVIII, com Pedro, o Grande, e depois com Catarina, a Grande, a Rússia ensaiou uma aproximação à Europa mais desenvolvida. Nas 1.ª e 2.ª Guerras Mundiais, a Rússia e a sucessora URSS anticapitalista estiveram também a combater ao lado das potências democráticas liberais. Agora, decerto por demasiado tempo, a Rússia ficará de costas voltadas para a Europa mais desenvolvida, a ocidente. Será uma lamentável perda mútua. Muitos lembram-no e é verdade: no contexto da geopolítica mundial, os EUA emergem como os grandes ganhadores neste conflito, porventura algo acompanhados pela China, mas à União Europeia, às democracias da Europa não restava outro caminho senão apoiar a Ucrânia.


Autor: Amadeu J. C. Sousa
DM

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20 maio 2022