LIÇÃO CONTRA A INDIFERENÇA
Por mais eloquentes e pedagógicas que sejam, há lições na vida das pessoas, como na das comunidades, que tendem a ser esquecidas, com consequências muitas vezes desastrosas. Entre elas, veio-me à memória a extraída do conhecido poema do teólogo protestante alemão, Martin Niemöller –, sobre o nazismo, que reza assim:
“Um dia, vieram e levaram o meu vizinho que era judeu. Como não sou judeu, não me incomodei. No dia seguinte, vieram e levaram outro meu vizinho, que era comunista. Como não sou comunista, não me incomodei. No terceiro dia, vieram e levaram o meu vizinho católico. Como não sou católico, não me incomodei. No quarto dia, vieram e levaram-me a mim – e já não havia ninguém para falar.”
Esta denúncia do perigo de assumir uma atitude de indiferença ou de complacência perante actos criminosos e espúrios que violam direitos fundamentais dos cidadãos e das nações, consagrados na Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, da Carta das Nações Unidas e, em geral, no direito internacional, ganha toda a actualidade no caso da invasão e agressão à Ucrânia perpetradas pela Rússia, de Putin. Senão, vejamos:
Primeiro, após a implosão da União Soviética, a Federação Russa, injusta e brutalmente, impediu a Chechénia de aceder à independência, apesar de os chechenos terem um território bem delimitado, uma identidade bem vincada, uma etnia, língua e cultura caucasianas próprias, da população ser maioritariamente muçulmana, da economia ter no petróleo o seu mais importante recurso e de ser um país autónomo, com bandeira e constituição igualmente próprias.
Pese embora uma primeira derrota em 1996, a Rússia, em 2000, já com Putin à frente do Governo, sob o pretexto de uma “operação antiterrorista”, arrasou grande parte da capital chechena, Grozny, com artilharia, ataques aéreos e colocação de minas. Morreram milhares de pessoas, civis e militares e houve milhares de deslocados e refugiados. Mas a comunidade internacional fechou os olhos, fingindo acreditar na imputação aos insurgentes chechenos de abomináveis acções terroristas contra civis em território russo – cuja autoria, no entanto, não foi confessada nem suficientemente comprovada – e não denunciando verdadeiros crimes contra a humanidade que ali foram cometidos pelo exército russo contra alvos civis.
Depois foi a vez da Geórgia, em 2008. Com o incentivo e apoio do governo russo, as forças separatistas da Abecásia e da Ossétia do Sul, começaram a lutar contra o regime da República georgiana independente em que se integravam.
Ao envio de tropas do governo legítimo da Geórgia para restabelecer a ordem, respondeu Putin com o envio de milhares de soldados para apoiar os separatistas, numa acção que, cinicamente, apelidou de “operação de reforço da paz”…
As autoridades ocidentais – UE e NATO – condenaram a resposta da Rússia, que consideraram “desproporcional”, mas pouco mais disseram e nada fizeram contra a não retirada das forças russas estacionadas naquelas regiões separatistas. Ao cabo de um ano, já as tensões com o Ocidente se haviam dissipado e a razão foi óbvia – o principal fornecedor de energia (petróleo e gás) a um grande número de países da Europa era a Rússia…
Seguiu-se, em 2014, a invasão e a anexação da Crimeia, acções que foram condenadas pela generalidade dos membros da comunidade internacional, mormente os EUA e UE que igualmente se insurgiram contra o referendo organizado pela Rússia sobre a anexação daquela península ucraniana.
Apanhado desprevenido, o Ocidente reagiu de forma tímida, decretando sanções contra o país invasor e contra certas autoridades russas e determinadas personalidades da região anexada. Uma vez mais, pesou nessa atitude de frouxidão a dependência da energia russa de um vasto leque de nações europeias.
Estava assim criado o quadro indutor e facilitador de futuras e maiores violações do direito internacional e da Carta das Nações Unidas, quadro esse que a sentida desunião da NATO e da UE tornava ainda mais permissivo.
Foi desse modo que acabou por chegar a vez da Ucrânia. De toda a Ucrânia e não apenas da região separatista de Donbass, como se viu pela tentativa de tomada de Kiev, para derrubar o governo legítimo do país, colocando no seu lugar um governo fantoche controlado pelo invasor russo.
Valeu a resistência heroica do exército e do povo ucranianos e a bravura indómita do presidente Zelensky que, em condições tremendamente desiguais de armamento e poderio militar, souberam agigantar a Ucrânia e travar o passo ao invasor. Com enormes perdas de vidas humanas e materiais, é certo. Com a destruição de tantas e tantas aldeias, vilas e cidades. Sofrendo crimes de guerra hediondos e o êxodo e deslocação de milhões dos seus cidadãos, a Ucrânia suplicou desesperadamente pelo auxílio da Europa e da NATO.
E, finalmente, os seus gritos foram ouvidos e a solidariedade ocidental começou a funcionar. O milagre da União da Europa e da NATO aconteceu. O espírito solidário falou mais alto. O mundo livre acordou para a dura realidade de que a paz se tem de garantir com solidariedade entre os seus Estados e organizações e com uma eficaz estratégia de defesa dos seus valores fundamentais da liberdade e da democracia. Pena foi que a sua reacção tivesse pecado por tardia. Mas que fique a lição: a indiferença perante as injustiças e violações do direito internacional pode fazer de qualquer país a próxima vítima do mais vil e criminoso despotismo.