twitter

O Supremo americano e o aborto

Marco Túlio Cícero, o grande advogado, político, escritor, orador e filósofo, mestre da prosa latina, no seu famoso discurso Pro Archia Poeta, demonstrou que há formas de tornar a sociedade mais justa e que, mesmo quando a lei parece ser um obstáculo, é necessário saber interpretá-la de modo a que o valor supremo da justiça se imponha. A justiça está, na verdade, acima da própria lei; a iurisprudentia romana não confunde o ius com a lex. Esta não constitui o seu princípio nem o seu fim: deve obediência ao ius; por isso, o problema da lex iniusta tem uma solução fácil: não se aplica, porque não é direito.

Cícero defendia o seu mestre Árquias de ser expulso de Roma por não ser cidadão romano e, mais do que provar que Árquias era cidadão romano pelas leis, o orador quis demonstrar que devia sê-lo por mérito próprio. Numa estratégia completamente original no mundo forense de então, baseou-se no enaltecimento dos valores éticos e morais que justificariam a atribuição da cidadania.

A aequitas, um dos pilares em que assenta o ius romanum era uma força moderadora que corrigia a rigidez da lei e sempre que o estrito cumprimento desta originasse um caso injusto, a justiça seria aplicável de acordo com princípios que transcendem a letra da lei e com os preceitos fundamentais da ordem jurídica, numa ação livre de preconceitos, favores e erros ostensivos.

Vem isto a propósito do projeto de decisão que veio a público do Supremo norte-americano, que indicia que a maioria atual desse Tribunal está prestes a revogar o direito constitucional ao aborto nos EUA escrito pelo juiz conservador Samuel Alito, reconhecendo o direito ao aborto como erroneamente decidido e criticando a decisão do caso Roe v. Wade de 1973 que o admitiu, influenciada pelos ventos da Europa emergentes do maio de 1968 e pela falácia dos movimentos inspirados no amor livre e de Woodstock, que na altura dividiu o país em pro-Roe (pró-escolha) e anti-Roe (pró-vida), inspirando um forte ativismo de ambos os lados.

O resultado final da votação do Supremo, prevendo-se que seja conhecida em junho, terá indubitavelmente repercussão em todo o mundo. A grande expetativa nos movimentos pró-vida é que constitua uma oportunidade para fazer reentrar na agenda política a discussão sobre a legalização do aborto e que em Portugal foi imposta por uma maioria conjuntural de esquerda no Parlamento em 2006, que convocou um referendo sobre o aborto, realizado em 2007, onde venceu o sim apesar da votação nas urnas não ter sido suficiente para tornar vinculativo o referendo.

Recorde-se que poucos anos antes, em 1998, havia sido realizado na nação um referendo com a mesma pergunta e que foi rejeitado com um não à despenalização do aborto. Não sendo de todo crível que a consciência ético-jurídica dos cidadãos tivesse mudado em tão poucos anos, numa questão de direitos fundamentais tão importante, a razão parece residir em que, no primeiro referendo a questão foi colocada publicamente em termos dos valores éticos e morais de que nos fala Cícero e da segunda vez, tendo aprendido com a derrota, os defensores do aborto habilmente deslocaram o tema impressionando os portugueses com a injustiça de colocar mulheres na cadeia, às vezes sabendo-se lá as circunstâncias em que abortaram.

O argumento passou, mas é ilusório. A questão central prende-se com a perpetuação de valores morais que se resumem no princípio que o direito à vida é inviolável. A história do direito mostra que evolução da humanidade afirma-se em concordância com este valor inalienável e todas as leis humanas que em determinado momento atentam contra ele constituem um retrocesso civilizacional. Apontar os defensores da vida como insensíveis aos dramas da mulher grávida foi uma chantagem da maioria política de 2006, encabeçada por um Sócrates que repristinava temas fraturantes quando não pretendia que estivessem atentos ao que andava a fazer. Daí ter rejeitado soluções compromissórias com base na teoria da ação penal da exclusão de culpa desenvolvidas por reputados humanistas como Rui Machete e Freitas do Amaral. Mais do que condenar pretende-se proteger e tutelar a vida.

O aborto “é mais do que um problema, é um homicídio”, lembra-nos o Papa Francisco. A nova inclinação do Supremo americano vai no sentido da proteção da vida. E nem se sustente conspirativamente que se trata de uma maioria conservadora obra de Trump, pois o mesmo se poderia dizer da maioria de 1973.


Autor: Carlos Vilas Boas
DM

DM

11 maio 2022