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OS DIAS DA SEMANA O que a fez detestar Putin

“Pensei muito nas razões que me levam a ter esta antipatia por Putin. O que é que me faz detestá-lo ao ponto de escrever um livro sobre ele?” A autora da interrogação é Anna Politkovskaya e foi em A Rússia de Putin que a então jornalista do Novaya Gazeta lhe concedeu uma longa e amadurecida resposta. O presidente russo, “um típico tenente-coronel do KGB”, tem uma imagem “tão provinciana como o seu posto pode sugerir; tem a personalidade antipática de um tenente-coronel que nunca chegou a coronel, os tiques de um polícia secreto soviético que por hábito espia os próprios colegas”. Isto seria insuficiente para justificar uma aversão que imediatamente se percebe ser enorme por um homem que consolidou o seu poder em 2004, segundo Anna Politkovskaya, por causa da “negligência, apatia ou cansaço” do povo russo e por entre “os coros de encorajamento do Ocidente, particularmente de Silvio Berlusconi, que parece ter-se apaixonado por Putin”. O ex-primeiro-ministro italiano não esteve só. Putin, constatou ainda Anna Politkovskaya, gozava “também dos favores de Blair, Schröder e Chirac” e não recebia “notas de desagrado do transatlântico Bush filho”. Ou seja: “Nada obstaculizou o caminho do nosso homem do KGB para se perpetuar no Kremlin: nem o Ocidente, nem uma verdadeira oposição interna”. “Porque é que eu não gosto de Putin?”, questiona-se, de novo, Anna Politkovskaya. E, desta vez, a resposta é mais contundente: “Eu não gosto dele porque ele não gosta de pessoas. Despreza-nos. Vê-nos como meios para atingir os seus fins, como meios para alcançar e manter o seu poder pessoal, nada mais. Assim, como acredita que pode fazer de nós o que quiser, brinca connosco como entende, destrói-nos como lhe apetece. Não somos ninguém, enquanto ele, cuja sorte permitiu que trepasse ao topo da pilha, é hoje czar e Deus”. Dois meses depois de A Rússia de Putin ter sido publicado em Portugal pela editora Pedra da Lua, Anna Politkovskaya era assassinada a tiro à porta do elevador da sua casa em Moscovo. Era o dia 7 de Outubro de 2007. A voz que erguera contra Putin ganhou uma razão – e força – suplementar: “Na Rússia, tivemos outrora dirigentes à sua semelhança, que nos conduziram a tragédias, a sangrias em grande escala, a guerras civis. Não quero mais. É por isso que eu detesto tanto este típico tchekista* soviético, quando se pavoneia pela passadeira vermelha no Kremlin a caminho do trono da Rússia”. Lidos agora, tendo como trágico pano de fundo a guerra que a Rússia está a mover contra a Ucrânia, os livros da jornalista do Novaya Gazeta sobre Putin e a Rússia – pelo menos os publicados em Portugal – tornam-se ainda mais eloquentes. “De apelido, Putin passou a alcunha. Tornou-se o símbolo da restauração do regime neo-soviético na Rússia”, escreve Anna Politkovskaya em Chechénia, a vergonha russa, que a Alétheia editou no nosso país. “Os métodos soviéticos estão novamente na ordem do dia”, assegura ela, explicando que “Putin pensa sinceramente que a época soviética era melhor e deve ser restaurada” e que essa era a “época em que o KGB estava no apogeu da sua força e toda a gente o temia sem saber concretamente porquê”. “Porque não gosto de Putin” é também o título de um capítulo do livro sobre a vergonha russa na Chechénia. O relato de Anna Politkovskaya sobre o conflito na república do Cáucaso do Norte é tremendo. “Respondo pelas minhas palavras: uma em cada duas pessoas abatidas na Chechénia é um civil executado numa acção de justiça sumária”, escreve a jornalista, imputando a autoria das chacinas a militares ao serviço de Putin. Na longa descrição da selvajaria que Putin instigou na Chechénia – a que, tal como denuncia a jornalista, o Ocidente fechou os olhos –, podemos encontrar um funesto espelho da tragédia ucraniana. O que se passou na Chechénia é o que se está a passar na Ucrânia – ainda que agora seja mais reduzido o número dos que preferem ter os olhos fechados (por cálculo ou por militância). Nos dois conflitos, encontramos, sobretudo, esse velho ódio cego, que é um combustível de todas as guerras. “As guerras terminam no momento exacto em que os nossos sentimentos de ódio deixam de existir”, escreveu Anna Politkovskaya. Tem razão. E aí está outra razão para se abominar Putin: como é possível gostar da criatura que, como a jornalista testemunhou, instigou uma guerra sem mostrar qualquer preocupação com as vítimas dela resultantes e fez crescer “a sua quota de popularidade” à custa do sangue nela derramado? *A classificação evoca os membros da polícia política dos primórdios da União Soviética.
Autor: Eduardo Jorge Madureira Lopes
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1 maio 2022