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Grão-russos: os devotos imperiais

A natureza imperial do poder projectado por Moscovo perpassa recorrentemente a discussão em torno da sua política externa. Esta visão constata a existência de factores de continuidade no enunciado externo do estado – construído historicamente em torno de um núcleo identitário russo. Estes factores seriam, de alguma forma, independentes da natureza do poder político ou de cada regime vigente. Nesta linha, ao terceiro império sucedeu o sistema soviético que pode não ter sido um império colonial em sentido estrito, mas produziria os mesmos efeitos. Referimo-nos a um estado com ambições de hegemonia alargada traduzindo o mesmo nexo imperial ininterrupto que marca a expansão da Rússia desde há mais de seis séculos. A popularidade da ideia de império no seio da sociedade é, aliás, um dado inseparável da imagem de si mesmos.

O conceito de império designa um estado multi-étnico com um vasto território, cujo poder supremo é detido por um único titular. O império funda-se na lógica de um acentuado controlo das populações e de organização marcial do espaço, tendendo a cristalizar um sistema centralizado e autoritário. Resulta de uma superioridade militar, e é este elemento que resume a sua tendência para a hegemonia - um padrão distintivo. O ponto essencial de paralelismo entre os impérios clássicos e os impérios coloniais reside precisamente no papel do poder militar na sua formação e manutenção. No caso vertente, a percepção da sua imensidão euro-asiática encorajaria a política imperial da Rússia.

Ora, o impulso imperial em que historicamente assentou o seu domínio reemerge no período pós-soviético, ainda que de forma mais mitigada. Neste particular, sobrepor-se-ia às vicissitudes de uma abertura democrática limitada, plasmada na constituição de 1993. Como assinalou José Manuel Villas-Boas no seu Caderno de Memórias – antigo embaixador de Portugal em Moscovo e um dos mais competentes diplomatas da sua geração – o triunfo de Boris Ieltsin sobre a Duma naquele mesmo ano marcou uma viragem na curta história do regime democrático pós-soviético, apontando para um “autoritarismo crescente” do presidente. A tentação de regresso a uma política de recorte imperial entrevê-se claramente no capítulo das relações com os estados periféricos que resultaram da fragmentação da URSS. A doutrina militar articulada por Ieltsin considerava já o “estrangeiro próximo” como indispensável à sua segurança, tornando em parte vã a discussão sobre a normalização internacional da Federação Russa e sobre o seu processo de “democratização”. Reconhecidamente, a vontade reafirmada da Rússia em manter-se uma grande potência – velika derjava – reaparece como uma prioridade na reorientação expressa por Ieltsin. Uma das suas manifestações imediatas é a propensão da liderança em privilegiar a lógica de relações “à la carte” com as ex-repúblicas soviéticas. Deste modo, a ambiguidade histórica que perdura no delineamento da política externa conduz-nos a duas leituras diferenciadas do nacionalismo grão-russo e das suas relações com o resto da Europa. Uma, porventura mais perene, vê a história da Rússia como a de um estado poderoso com uma imagem de grandeza de si próprio que molda os códigos culturais, e tem coarctado a emergência de uma sociedade civil mais actuante. A outra, coloca o acento tónico sobre a vocação europeia e a sua “ancoragem” à Europa.

Esta dicotomia de carácter contraditório tem expressão nas clivagens que se descortinam entre eslavófilos populistas e modernizadores ocidentalistas. Uma “escolha europeia” mais acentuada, em detrimento da identificação cultural euro-asiática é, pois, um processo cujo resultado final não pode ser antecipado. Como tem sido sublinhado, um dos problemas cardinais na definição da própria Europa centra-se na inclusão ou exclusão da Rússia, sendo que a ênfase dada por Gorbatchev às raízes europeias da Rússia foi considerada um anátema estratégico. Com efeito, o seu desenho em forma de “grande casa europeia” por via da aproximação cultural com o Ocidente enfrentaria significativos obstáculos internos. O paneslavismo russo – talvez a corrente nacionalista histórica mais pujante – é geralmente apresentado como uma reacção psicológica e cultural à ocidentalização da Rússia, representando uma clivagem entre os dois mundos, e constitui, em grande medida, o princípio comum que regeu o nacionalismo oficial dos czares, a utopia cristã dos eslavófilos, o populismo bolchevique, e o presente ciclo pós-soviético. O euro-asismo é a sua fórmula comum. É certo que a Rússia é parte da Europa, mas ao mesmo tempo define-se pela premente realidade de um grande espaço que vai do Báltico e do Mar Negro ao Pacífico. Em última análise, o obstáculo crítico para a reformulação da política externa russa ao encontro do modelo euro-atlântico parece ser cultural: o discurso “diplomático” e as acções de política externa de Moscovo reproduzem sobretudo reflexos identitários.

Nesta medida, se se aceitar que factores perenes mais do que reorientações tácticas são a regra, a política externa deve ser perspectivada como uma função das aspirações russas à hegemonia macrorregional. A ambição ao estatuto de grande potência favorece a tese da continuidade sistémica no tipo de relações que o centro da Federação Russa estabelece com as suas periferias interna e externa. Neste sentido, a “normalização” da política de Moscovo na arena internacional e do seu relacionamento quer com a União Europeia, quer com a NATO, não seria tanto “cativa” das fórmulas da Guerra Fria, quanto dos seus ímpetos históricos de grandeza. A “reentrada” no concerto das nações coexiste com o impulso imperial.

A ordem mundial saída da implosão da União Soviética é precária e complexa. Da reflexão que aqui se tenta evidenciar, afigura-se-nos que continua a existir na dilucidação dos códigos genéticos da política internacional da Rússia uma insuficiente leitura da sua história de dominação agressiva. O nacionalismo grão-russo permanece uma variável perene e a Federação Russa preserva o carácter de um imenso império que assume, em termos de imagem própria, o estatuto de potência euro-asiática. As suas escolhas internacionais são resultado de uma afirmação externa orgulhosa e não-conciliadora, que tem na gravíssima e inadmissível invasão da Ucrânia o seu capítulo mais recente. Com esta acção intolerável, que fere gravemente os códigos de um mundo civilizado, a Rússia atropela o princípio virtuoso da indivisibilidade da segurança no plano das relações com o Ocidente que, em qualquer caso, será necessário reconstituir. A bem da salvaguarda da soberania da Ucrânia, dos seus corajosos cidadãos e da liberdade e paz na Europa.


Autor: Luís Lobo-Fernandes
DM

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9 março 2022