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Reflexões à flor da relva

Há dias, quando inquiri os alunos da Pós-Graduação em Comunicação no Futebol Profissional (UCP-Liga de Portugal) sobre quem seria o atleta mais bem pago da história, metade da turma referiu Cristiano Ronaldo. Na verdade, trata-se de um lusitano, mas não é CR7. Caio Apuleio Diocles (Lamego, 104 - Palestrina, 146) foi o melhor condutor de quadrigas do império romano. Correu pelos brancos (albati), transferiu-se para os verdes (prasini) e terminou a carreira nos encarnados (russati). As estatísticas indicam que fez 4257 corridas, tendo obtido 1462 vitórias, 502 das quais na última volta. Em termos de rendimentos, calcula-se que tenha auferido cerca de 35,8 milhões de sestércios, o que equivale a 11,6 mil milhões de euros. Ficou para a posteridade, sendo até evocado no álbum “Astérix e a Transitálica” com o nome de Coronavirus!

Nas corridas de quadrigas, havia quatro fações (factiones) constituídas pela equipa e os adeptos respetivos – com lugar específico no hipódromo – e associadas às diferentes classes sociais ou práticas religiosas. As fações formavam verdadeiras milícias (deme), servindo as corridas em tempo de agitação social como pretexto para sublevações populares. Ficou célebre a sedição de Nika, a 13 de janeiro de 532, em Constantinopla, quando as fações azuis e verdes se aliaram contra o imperador, provocando cerca de 80 000 mortes em apenas cinco dias. Mais não restou a Justiniano do que abrir os cofres para acalmar os ânimos. Temos memória curta, mas há muito que a competição desportiva constitui um fenómeno social total.

Bem mais recentemente, o internacional escocês e treinador do Liverpool (1959-1974) William “Bill” Shankly (1913-1981) terá proferido a seguinte afirmação: “algumas pessoas acreditam que futebol é questão de vida ou de morte. Fico muito dececionado com essa atitude. Eu posso assegurar que o futebol é muito, muito mais importante.” Pese embora algum exagero, o certo é que a essência dos eventos desportivos vai muito além do terreno de jogo e das bancadas. É simultaneamente um entretenimento, uma indústria, um fenómeno sociopolítico e um espaço de comunicação. Há quem tenha inclusivamente apelidado o futebol de religião laica com os seus fiéis, a sua hierarquia e a sua liturgia.

De facto, o futebol envolve hoje também todos aqueles que se encontram – sozinhos ou em grupo – face ao televisor ou ao telemóvel, assim como as multidões reunidas em torno de ecrãs gigantes aquando das grandes competições, mas também os que comentam o jogo durante a semana. Ser adepto de um clube ou de uma seleção é uma performance ritual, é fazer parte de uma “comunidade imaginada” (Anderson, 1983), num processo de identificação enquanto membros de um coletivo unido por laços profundos. Sempre o desporto foi alvo de instrumentalização política, serviu de escape para tensões sociais e materializou rivalidades recentes ou ancestrais, mas há um momento em que a modalidade se deve adaptar às mudanças em curso, sob pena de perder adeptos ou mesmo de vir a desaparecer a longo prazo.

É precisamente à diminuição da popularidade do futebol junto das camadas mais jovens que o diário berlinense Die Welt (28/01/22) acaba de consagrar um extenso artigo. Cansadas da hipermercantilização, dalgumas regras do próprio jogo e do comportamento de certos intervenientes, as denominadas gerações Alfa (nascidos a partir de 2010) e Z (nascidos a partir de meados dos anos 1990) distanciam-se cada vez mais da modalidade. Embora muitos atores procurem elevar o nível do futebol para outros patamares, o certo é que perduram as transações financeiras duvidosas, um decréscimo da concorrência competitiva e as dúvidas sobre a verdade desportiva, num ambiente em que ainda pululam dirigentes obsoletos, intermediários gananciosos, treinadores boçais, jogadores trapaceiros, diretores de comunicação amorais, comentadores tendenciosos e adeptos violentos. O futebol está em crise profunda, mas a maioria apenas se preocupa com a conquista do próximo troféu.


Autor: Manuel Antunes da Cunha
DM

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19 fevereiro 2022