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Portugal tem de começar a privilegiar o acolhimento familiar das crianças

Portugal tem de começar a privilegiar o acolhimento familiar das crianças
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Publicado em 23 de abril de 2021, às 22:26

Nos casos em que a retirada à família de origem é necessária.

Portugal precisa de começar imediatamente a privilegiar o acolhimento familiar das crianças e jovens em vez de fazer o seu encaminhamento para o acolhimento residencial. Embora a retirada às famílias de origem seja a medida mais drástica, há casos em que esta é a solução que melhor serve os interesses das crianças. [caption id="attachment_203217" align="" width="443"] ©Oleksandr Koval/Unsplash[/caption] O número de crianças e jovens em acolhimento residencial tem valido a Portugal reparos a nível internacional. De acordo com o Relatório de Caraterização Anual da Situação de Acolhimento de Crianças e Jovens (Relatório CASA), mais de 97% das crianças com menos de 6 anos retiradas à família estão em acolhimento residencial, valor que ultrapassa os 98% no caso dos bebés. É, por isso, urgente privilegiar o encaminhamento para o acolhimento familiar, dando assim cumprimento à legislação em vigor. O alerta é lançado pela presidente da AjudAjudar – Associação para a Promoção dos Direitos das Crianças e Jovens, Sónia Rodrigues. Com o doutoramento em Psicologia centrado na qualidade do acolhimento residencial nacional, esta especialista adverte que Portugal precisa de «inverter urgentemente os números do acolhimento residencial e do acolhimento familiar», pois os valores atuais envergonham o país a nível europeu. A investigadora externa do Grupo de Investigação e Intervenção em Acolhimento e Adoção (GIIAA) da Faculdade de Psicologia da Universidade do Porto começa por contextualizar que, «embora seja consensual na ciência que a institucionalização tem muitos riscos para a criança e que esta não é a melhor forma de a proteger, não se pode acabar com as casas de acolhimento uma vez que há casos em que estas estruturas são necessárias». A intervenção na proteção infantil deve, preferencialmente, optar por manter a criança na sua família, mas quando as medidas de intervenção em meio natural de vida se revelam ineficazes a retirada da criança do contexto familiar para sua própria proteção torna-se imprescindível. Nestes casos, sempre que possível, a opção deve ser a colocação da criança em acolhimento familiar. O acolhimento residencial ficaria reservado para situações que exigem um acompanhamento de cariz especializado ou para jovens que não queiram ser integrados numa família de acolhimento. Sónia Rodrigues lembra que, nesta linha, a Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, revista em setembro de 2015, defende «a manutenção da criança no seu contexto familiar, atendendo ao seu superior interesse, sempre que esta não se encontre em risco ou perigo». No caso de retirada à sua família de origem, esta lei estipula que as crianças até aos 6 anos devem ficar preferencialmente em acolhimento familiar. Contudo, foi necessário esperar até setembro e outubro de 2019 para as regulamentações do acolhimento familiar e residencial serem publicadas e, mesmo assim, em ambos os casos, a sua implementação ficou dependente da publicação das respetivas portarias. A portaria relativa ao acolhimento familiar foi publicada em dezembro de 2020, faltando implementar o que ali é preconizado. Paralelamente, falta ainda a portaria relativa ao acolhimento residencial, que vai definir as regras para a reconversão das casas de acolhimento. No entender da especialista, «as casas de acolhimento residencial têm de fazer parte da mudança», uma vez que têm técnicos especialistas nesta área e podem ser as entidades enquadradoras do acolhimento familiar. «Com um sistema de proteção similar ao português, a Irlanda fez, em dez anos, a inversão dos números, envolvendo os profissionais nesta mudança», exemplifica. A investigadora refere que é preciso acautelar que as casas de acolhimento sejam «pequenas, de alta qualidade, geridas com base em modelos terapêuticos ou especializados e essencialmente para adolescentes e jovens», uma vez que, «para as crianças até aos 6 anos, a institucionalização é considerada maus-tratos». A perita mostra-se preocupada como a falta de calendarização desta questão, argumentando que um documento tão relevante como a Estratégia Nacional para os Direitos das Crianças não apresenta objetivos concretos ao nível da promoção do acolhimento familiar.   Casas de acolhimento com realidades muito díspares [caption id="attachment_203213" align="" width="664"] ©Cheryl Holt/Pixabay[/caption] A presidente da AjudAjudar – Associação para a Promoção dos Direitos das Crianças e Jovens alerta que quando se fala em casas de acolhimento residencial de crianças e jovens estão em causa realidades muito díspares, que vão desde pequenas unidades personalizadas até instituições gigantescas, em que tudo é rotineiro. Sónia Rodrigues refere que a diferença começa no financiamento destas instituições, havendo os acordos típicos e os atípicos. Em ambos os tipos de acordo é definido um valor por criança, ainda que nos atípicos seja negociado um valor diferente consoante os casos. «Quando as casas recebem em função do número de crianças acolhidas, têm tendência para querer ter mais utentes para receberem mais. Com este tipo de financiamento, as casas mais pequenas têm dificuldade em manter os técnicos e restantes cuidadores que garantam o funcionamento de qualidade pelo qual se pautam», afirma. A investigadora externa do Grupo de Investigação e Intervenção em Acolhimento e Adoção diz que a nível internacional se aponta para um número entre 6 e 8 crianças por casa, enquanto a regulamentação do acolhimento residencial publicada em Portugal em 2019 fala em 15. «Podíamos ter ido mais longe», comenta. Da mesma forma, a especialista dá conta que a mesma regulamentação prevê «a possibilidade de as casas poderem ter diferentes unidades, sem definir o que são». «Uma coisa é se estivermos a falar de unidades completamente autónomas, com instalações e equipas próprias, outra completamente diferente é se as casas puderem ter unidades divididas por andares, mas só com uma equipa para todas, em que as crianças têm de conviver no mesmo refeitório e nos espaços comuns», adverte. Reportando-se ao trabalho desenvolvido aquando do seu doutoramento em Psicologia, que contemplou a visita a 74 casas de acolhimento, a perita sublinha que «há realidades muito díspares», que vão desde casas com 12 crianças, a funcionar em regime familiar, em que comem todas à mesma mesa, com um frigorífico, que usam quando querem, e quartos individuais que podem ser personalizados, até instituições que acolhem 90 crianças. «Há casas em que bebés de 3 anos quase nunca saíram à rua, pois até o médico lá vai», relata. A investigadora recorda também que a legislação impede a separação de irmãos, o que esbarra com o facto de haver casas segregadas em função do género e da idade. «Mais de 60% das crianças estão em casas segregadas», declara. «Quando comecei a estudar este assunto, havia pouca informação sobre as casas de acolhimento. Agora, conhecemos a realidade. Se não há mudança é porque falta vontade para que isso aconteça. As entidades tutelares – Segurança Social (continente, Açores e Madeira), Casa Pia e Santa Casa da Misericórdia de Lisboa – têm a obrigação de acompanhar e fiscalizar estas casas regulamente, não apenas quando há denúncias graves», exorta. De acordo com a sua experiência, «é muito fácil perceber se uma casa é boa ou má perguntando às crianças». «No meu estudo, entrevistámos as crianças, dando-lhe voz. A correlação entre estas respostas das crianças e a sua avaliação da qualidade da casa de acolhimento em que viviam era impressionante», enfatiza.   Crianças invisíveis e sem voz [caption id="attachment_203216" align="" width="664"] ©AjudAjudar[/caption] A presidente da AjudAjudar – Associação para a Promoção dos Direitos das Crianças e Jovens considera que as crianças em regime de acolhimento residencial «não só são invisíveis como não têm voz». «Infelizmente, só olhamos para as casas de acolhimento quando há escândalos, como abusos sexuais ou maus-tratos. No dia a dia não se fala nos problemas reais destas crianças, nem destes cuidadores», afirma Sónia Rodrigues. Em seu entender, esta situação é ainda mais escandalosa porque estamos a falar de crianças que foram retiradas às suas famílias pelo Estado, com o argumento de que esta era uma medida para a sua proteção: «Como o Estado somos todos nós, todos nós somos responsáveis pelas crianças mais desfavorecidas, porque as outras têm os pais para as defenderem». «Há cerca de 7 mil crianças neste país que precisam de ser lembradas. Não é uma realidade agradável, por isso preferimos não a ver. Mas existe e não nos podemos desresponsabilizar dela», declara. A especialista ressalva que «é extremamente injusto para os profissionais que trabalham nesta área só serem lembrados quando ocorrem situações negativas. Há muitos profissionais excelentes, que dão diariamente o máximo, às vezes sem condições para isso», sublinhando que «os colegas estrangeiros ficam admirados com o carinho que há entre os cuidadores e as crianças nas casas de acolhimento portuguesas». A perita aponta a Escócia como um bom exemplo de uma «revolução em termos de participação», em que todo o sistema e promoção e proteção foi mudado, ao longo de dez anos, envolvendo as crianças. Em todas a reuniões houve a participação de crianças em acolhimento ou que passaram por este processo, tendo o seu contributo sido determinante para as alterações que foram realizadas, desde a linguagem usada até à imagem dos documentos oficiais.   Jovens têm de ser preparados para o futuro [caption id="attachment_203214" align="" width="512"] Sónia Rodrigues. @DR[/caption] Sónia Rodrigues considera que um dos problemas do sistema de promoção e proteção de crianças e jovens, tanto em Portugal como no estrangeiro, é colocar-se a tónica na proteção, negligenciando a prevenção e a promoção dos direitos das crianças. Na sua perspetiva, a intervenção deveria ser, antes de mais, no sentido de evitar a necessidade de uma medida de acolhimento, protegendo e apoiando as famílias, e continuando a trabalhar em conjunto com as famílias durante o período em que a criança está acolhida. Por outro lado, com as crianças e jovens devem ser trabalhadas, durante a sua permanência em acolhimento, competências que lhes permitam uma reintegração familiar e/ou o começo de uma vida independente bem sucedida. Na prática, sustenta, atualmente as crianças e jovens não são suficientemente preparados para o futuro fora das casas de acolhimento, fazendo com que sejam obrigados a tornar-se adultos sem que a sua autonomia tenha sido devidamente promovida. A supervisora de casas de acolhimento residencial explica que há jovens que saem para o exterior sem saberem comparar preços ou fazer compras num supermercado. «Há crianças que têm uma rigidez tão grande nas suas rotinas diárias dentro da casa de acolhimento que quando saem da casa se sentem perdidas. Esses jovens vão, então, ser pais muito cedo, porque estão sozinhos e precisam de carinho e amor. Vão ser pais quando ninguém os ensinou a ser pais, nem sequer tiveram oportunidade de viver em família e de ter modelos do que é ser pai ou mãe», diz. A especialista defende que é necessário articular o trabalho entre as instituições de acolhimento e as famílias de origem das crianças e jovens, preparando o terreno para o regresso a casa. Da mesma forma, argumenta que é necessário aumentar a sensibilidade social para esta problemática, na linha da iniciativa Dia Nacional do Pijama, lançada pela Mundos de Vida (Lousado), que lembra que as crianças têm direito a crescer numa família.
Autor: Luísa Teresa Ribeiro