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Acho estranho

O cronista não pode ficar indiferente ao que se passa com a ciência médica. Em tempo recorde as farmacêuticas laboratoriais puseram a circular uma vacina. Vacina não significa cura, mas previne e trava a propagação do vírus. A pressa como esta vacina apareceu levantou algum receio uma vez que estávamos habituados a que os laboratórios levassem anos a desenvolver uma vacina. Mas provou-se que esta ciência pode apressar os remédios indispensáveis à humanidade. Basta que apareçam os milhares de milhões e tudo caminha à velocidade da necessidade. Penso que muito mal se poderia ter resolvido, muita morte se poderia ter evitado se os dinheiros que foram gastos em armamento e seu desenvolvimento, tivesse sido aplicado na investigação medicamentosa. Mas o armamento é, para os “senhores da guerra”, um modo de vida e um processo de enriquecer. Com este sucesso recente ficamos a saber que o progresso da cura depende de dinheiro e também dos intermediários que, como em tudo, metem o dente ou provam da golada. Mas temos de nos render: a ciência ganhou o respeito generalizado e deixou de ter a caraterística de doce conventual. Isto levantou nos espíritos a ideia de que os governos devem investir muito mais na ciência do que aquilo que tem feito. Mas a verdade que disto ressalta num volver de olhos é que se a vacina for propriedade dos países ricos pouco adianta aos povos dos países pobres, que serão os últimos a ser vacinados e, no entanto, são esses mesmos pobres que serão os principais transportadores da pandemia. Será que são os pobres sempre e em qualquer circunstância a pagar a fatura mais pesada? Por outro lado começa a transparecer que a vacina deveria e poderia ser reproduzida por outros laboratórios, ganhando-se dimensão de produção e uma mais rápida cobertura mundial. Mas a Pfizer, por exemplo, gastou na investigação tempo e dinheiro e agora quer a contrapartida. É verdade, mas este argumento, mesmo que justo, não pode sobrepor-se aos princípios humanistas que devem presidir a qualquer ato humanitário. Se houve partilha e colaboração científica, a vacina não tem um só senhor. Por isso acho estranho que as farmacêuticas se fechem como tartarugas dentro da carapaça. Não, não podemos esquecer-nos dos outros porque aos mais desafortunados já lhes basta as necessidades diárias como desgraça. Houve financiamentos vultuosos para se chegar tão rápido a esta vacina, então não há razão que impeça uma distribuição universal; não pode haver egoísmos de rico para com os mais pobres. Acho estranho que se não discuta desde já estes assuntos. Ninguém pode sentir-se vacinado quando sabe que outros ainda desesperam por sê-lo. Se for assim, acho estranho.


Autor: Paulo Fafe
DM

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4 janeiro 2021