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Aqui D’El Rei. Acudam!

A Expressão em título, imortalizada pelo realizador de cinema António Pedro Vasconcelos, ou melhor, a interjeição que o Dicionário Priberam explica como sendo, “palavra ou locução que exprime com energia os afetos do ânimo”, veste bem com a notícia fresca que anteontem apareceu nas páginas dos jornais portugueses e revela como andam faustosos e animados alguns dos protagonistas da nossa classe empresarial: “Braga e Porto lideram compra de Porches elétricos na Península Ibérica”. Fiquei abismado ou nem tanto; algo me dizia que a notícia era repetitiva. Explico: em plena crise têxtil que abalou a região do Minho na década 80 e 90 e com milhares de postos de trabalho extintos, a notícia arrepiante de que muitos empresários estavam a investir em bens de luxo, quando as suas empresas faliam, era um retrato negro de como, de forma contraditória, o setor encarava o abismo do setor.

Passadas décadas e após uma notável recuperação de uma área de economia que está na berra, apesar das dificuldades, somos confrontados com a mesma realidade, a mesma mentalidade irresponsável com que uma parte da classe empresarial encara as suas motivações para o negócio: perante o risco, foge-se e investe-se no pecúlio de bens de “primeiríssima necessidade” para gáudio do umbigo. De tal forma, a notícia deste investimento no setor automóvel surpreende, ou nem tanto, que a primeira coisa que me passou pela cabeça foi a incredulidade perante tal devaneio. A liberdade de investir em bens de luxo é um direito para quem pode e nisso estamos de acordo. Mas num momento de impacto económico gravíssimo provocado pela pandemia, ler aquela notícia deixou-me embasbacado e preocupado; afinal não se aprendeu nada com a distorção das prioridades no passado e mais preocupante fiquei, porque de certeza que muitos dos empresários que se aventuraram na compra dos Porches, fazem parte de uma nova geração, responsável pela recuperação daquele setor que é um dos motores da economia, nomeadamente das exportações. A mesma mentalidade parece ter sobrevivido ao tempo, é transversal a muitas áreas e na primeira oportunidade levanta-se dos escombros da economia e proclama a sua soberania perante o destino das suas empresas, ao mesmo tempo que parece pouco preocupado com a descapitalização, unindo-se em reivindicações sucessivas por apoios do Estado à sobrevivência das suas empresas. Esta realidade levanta algumas questões que merecem uma resposta a todos nós que somos o Estado e ao Governo que tem o destino nas mãos, no momento de distribuir apoios consecutivos à economia: deve ou não ser exigido aos empresários que se responsabilizem pessoalmente e em primeiro lugar, por reinvestirem o seu dinheiro em momentos de necessidade extrema como esta que vivemos? Deve ou não o Governo exigir uma declaração de responsabilidade sobre o uso dos bens pessoais acumulados legitimamente e fruto dos lucros ou não das empresas, quando está em causa o pedido de apoios públicos e ou comunitários? Deve-se ou não agir criminalmente quando uma parte dos empresários atua de forma irresponsável, dando sinais contraditórios sobre as reais necessidades. Do outro lado da barricada é conhecido o argumento: o que é meu é meu, o resto é da empresa, o que significa por vezes muito pouco. Há uns meses atrás, em pleno confinamento, um empresário de outro setor falava comigo sobre as dificuldades que a sua empresa estava a passar: as encomendas desceram abruptamente, estavam em causa trinta postos de trabalho e o mais certo era o despedimento e o fecho de atividade. Perguntei-lhe porque não aproveitava o momento para investir e modernizar a produção. A resposta pronta: e eu vou investir do meu?! - Claro, disse-lhe eu, a empresa não é sua?

Não faltam episódios a relatarem tanta mediocridade, mas, como em tudo, é preciso discernir e separar o trigo do joio. Este e outros são maus exemplos, não merecem um pingo de preocupação e deveriam ser excluídos pela própria classe empresarial. O país atravessa enormes dificuldades e seria pouco recomendável que todos tivessem o direito legítimo a gritarem da janela “Aqui D’El Rei”. Acudam!.

Aqui d'El Rei é um filme luso-hispano-francês histórico, simultaneamente lançado como série de televisão, realizado por António-Pedro Vasconcelos, estreado em 24 de Abril de 1992. Este telefilme é uma produção entre os canais públicos de Portugal, Espanha e França.
Autor: Paulo Sousa
DM

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8 novembro 2020