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Fratelli Tutti e as redes sociais

Ficamos sempre sumamente deslumbrados perante a tecnologia. Qualquer coisa que ela nos ofereça, anunciada para suprir uma necessidade, mesmo que nunca a necessidade tenha sido sentida, é imediatamente adoptada. No domínio da tecnologia, tudo se apresenta virtuoso. Por isso, qualquer manifestação de sentido crítico é dissuadida; qualquer objecção é ridicularizada. A tecnologia é, portanto, frequentemente, o sucedâneo do palácio para o boi. O escrutínio do que fazemos com as tecnologias e do que as tecnologias nos fazem é, todavia, imprescindível. Importaria por isso prestar atenção ao que, na encíclica Fratelli Tutti, o Papa Francisco veio agora dizer – repetir, em alguns casos – sobre os perversos modos como se frequentam as redes sociais. O mundo virtual, observa o Papa, manifesta “formas insólitas de agressividade, com insultos, impropérios, difamação, afrontas verbais até destroçar a figura do outro”. Para Francisco, a hostilidade atingiu um patamar tão elevado que, se tivesse uma tradução física, destruiria toda a gente. O nível de violência é, além disso, objecto de uma estranha e indesejável condescendência: “Aquilo que ainda há pouco tempo uma pessoa não podia dizer sem correr o risco de perder o respeito de todos, hoje pode ser pronunciado com toda a grosseria, até por algumas autoridades políticas, e ficar impune”. Fratelli Tutti serve para denunciar os poderosíssimos interesses económicos que operam no mundo digital. Eles são “capazes de realizar formas de controlo que são tão subtis quanto invasivas, criando mecanismos de manipulação das consciências e do processo democrático”. O Pontífice dá conta de um paradoxo: “Se, por um lado, crescem as atitudes fechadas e intolerantes que, à vista dos outros, nos fecham em nós próprios, por outro, reduzem-se ou desaparecem as distâncias, a ponto de deixar de existir o direito à intimidade. Tudo se torna uma espécie de espetáculo que pode ser espiado, observado, e a vida acaba exposta a um controlo constante”. O desaparecimento do silêncio e da escuta, que transforma “tudo em cliques e mensagens rápidas e ansiosas”, segundo explica Francisco, coloca em perigo “uma comunicação humana sábia”. Cria-se um novo estilo de vida, no qual cada um constrói o que deseja ter à sua frente, excluindo tudo aquilo que não se pode controlar ou conhecer superficial e instantaneamente”. A lógica intrínseca desta dinâmica “impede aquela reflexão serena que poderia levar-nos a uma sabedoria comum”. É que, como Francisco adverte, “a sabedoria não se fabrica com buscas impacientes na Internet, nem é um somatório de informações cuja veracidade não está garantida”. Deste modo, não é possível o amadurecimento no encontro com a verdade. “As conversas giram, em última análise, ao redor das notícias mais recentes; são meramente horizontais e cumulativas. Mas não se presta uma atenção prolongada e penetrante ao coração da vida, nem se reconhece o que é essencial para dar um sentido à existência. Assim, a liberdade transforma-se numa ilusão que nos vendem, confundindo-se com a liberdade de navegar frente a um visor. O problema é que um caminho de fraternidade, local e universal, só pode ser percorrido por espíritos livres e dispostos a encontros reais”. “A conexão digital não basta para lançar pontes, não é capaz de unir a humanidade”, avisa o Papa Francisco, depois de explicar que “as relações digitais, que dispensam a fadiga de cultivar uma amizade, uma reciprocidade estável e até um consenso que amadurece com o tempo, têm uma aparência de sociabilidade, mas não constroem verdadeiramente um ‘nós’; na verdade, habitualmente dissimulam e ampliam o mesmo individualismo que se manifesta na xenofobia e no desprezo dos frágeis”. Fratelli Tutti vem recordar a falta que fazem os gestos físicos, as expressões do rosto, os silêncios, a linguagem corporal “e até o perfume, o tremor das mãos, o rubor, a transpiração, porque tudo isso fala e faz parte da comunicação humana”. Precisamos de menos interacção com ecrãs e mais proximidade humana. Nota: Uma primeira versão deste texto foi publicado no site 7 Margens, no domingo passado, logo que findou o período de impedimento de divulgação do conteúdo da encíclica.
Autor: Eduardo Jorge Madureira Lopes
DM

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11 outubro 2020