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Riscos de estar/andar sozinho…

De repente ouvimos uma notícia sobre um despiste na autoestrada: alguém foi vítima e morreu… Diz-se que não seguia mais ninguém no veículo sinistrado… Horas mais tarde, aquele ‘anónimo’ passou a ter nome, é o bispo de Viana do Castelo, D. Anacleto Oliveira, de 74 anos.

Esta situação de um homem da Igreja trouxe-me à memória tantos outros que vivem e andam, nas lides sacerdotais sozinhos, mesmo já em idade avançada… quantos deles aguentando o peso da atividade pastoral, pondo em risco, quantas vezes, a própria vida.

Ora, por breves instantes, veio-me à lembrança uma quantidade de questões que, de alguma forma, tentarei aqui deixar escritas, mais como preocupação do que em acusação, tendo em conta tantas das vertentes da nossa educação e não do mero condicionamento de vida, possíveis interrogações sobre um sistema de conduta e nunca como recalcamento contra nada nem quanto a ninguém.

* Educação de responsabilidade pessoal – uma das dimensões mais acentuadas na nossa educação, desde tenra idade nos seminários, era a da personalidade acrisolada pela dificuldade, sem facilitismo nem cedências ao mais fácil… a conquista fazia-se pelo sacrifício. A partir daqui cada um tinha de aprender a ser ele e as suas circunstâncias, sabendo que os outros – eram às dezenas e centenas – estavam a viver idêntico processo. Isso em vez de poder fazer crescer o egoísmo, fazia-nos compreender que todos estávamos a ser testados, mesmo nos pequenos pormenores do dia-a-dia. Sem quase nunca ser dito, a verdade era servida em doses de sinceridade, de lealdade, de aprendizagem contra a mentira…

* Primeiro vive-se, depois explica-se – a cultura do testemunho era passada pelo crivo das palavras, pois estas só serviam para explicar, se fosse necessário, aquilo que se vivia. Desde muito cedo éramos mergulhados na vivência prática e não na mera verborreia. Se alguém se destacava nesta, quase era questionado se servia para vir a ser quem devia poder ser. Mesmo assim a palavra era sagrada, pois faltar-lhe seria ofender o que de mais sério havia: uma só palavra bastava para tudo ficar acertado.

* Respeitar os outros na diferença – os dons e as qualidades eram apreciados pelos superiores, que saberiam discernir o melhor aproveitamento em favor de todos… embora pudesse haver subtis favorecimentos, facilmente detetáveis e nem sempre bem aceites. Havendo muito por onde escolher, seriam os mais aptos a serem os promovidos. Com o passar dos anos nem sempre o critério dos melhores foi seguido…infelizmente. Será que a educação atual não está longe disso que nos foi ministrado com tanto saber e cultura feita de vida e para a vida?

* Excesso de caminhar para o individualismo – atendendo às tarefas futuras de assunção na condução de uma porção de pessoas no sentido restrito, foi-se gerando alguma prevenção para estar só, senão ao nível psicológico e espiritual, pelo menos no sentido físico e talvez emocional. Bem mais do que um certo ‘salve-se quem puder’ era incutido um saber estar só, sem ser solitário, embora nitidamente celibatário. Assim foi crescendo a visão interior e exterior de muitos dos servidores da Igreja, colocados sob a atenção de todos, mesmo que observados de forma nem sempre compreensiva, como seria desejável, aceitável e natural.

Disse D. Jorge Ortiga na homilia do funeral de D. Anacleto: «num contexto de individualismo e egoísmo, falar de serviço é uma novidade que causa estranheza a muitos, mas é com esta radicalizado que mostramos que o Evangelho mantém uma novidade permanente».

* Que riscos? Como os enfrentar? – Mais do que questões do foro sentimental este ‘estar sozinho’ tem riscos e comporta perigos, que precisam de ser apontados com simplicidade, caridade e compreensão. Se bem que possa haver uma estruturação para viver tendencialmente mais só, ninguém subsiste a estar solitário, seja qual for a idade em que se viva… A partilha de pontos de vista precisa de ser cultivada para que não possa haver uma espécie de fechamento sobre a exclusividade da sua perspetiva, talvez nem sempre a única, mas uma em confronto com outros… Não se pode cair na tentativa de introduzir substitutos compensatórios, pois com facilidade se podem tornar outros hábitos desejavelmente explicáveis e/ou tolerados… Na era das tecnologias eletrónicas podem ser imensas as seduções, sem esquecer as (ditas) redes sociais e tantos outros artefactos… Obrigado a tantos testemunhos de entrega no passado, no presente e para o futuro!

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Na era das tecnologias eletrónicas podem ser imensas as seduções, sem esquecer as (ditas) redes sociais e tantos outros artefactos… Obrigado a tantos testemunhos de entrega no passado, no presente e para o futuro!


Autor: António Sílvio Couto
DM

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28 setembro 2020