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Memórias de criança – a barragem da Quiminha

A maior parte das memórias mais marcantes da minha infância e adolescência foram passadas com o meu pai, Telmo Barbosa, engenheiro civil de profissão, que fez algumas obras significativas como a Barragem do Azibo em Macedo de Cavaleiros, já referida num artigo anterior.

Outra barragem cuja construção foi dirigida pelo meu pai foi a Barragem da Quiminha a cerca de 80 kms de Luanda, tendo ido de Portugal para Luanda para a construir, acompanhado da família.

Se há algo que eu ansiosa esperava, com cerca de 8 a 10 anos de idade, eram as férias para acompanhar o meu pai, que durante a semana estava na obra da barragem e ao fim de semana ia para a nossa casa em Luanda.

O meu pai colocou na barragem casa para os funcionários com família, refeitório, uma hospedaria, estaleiros muito bem concebidos, posto de saúde, escola para as crianças, além de um campo de futebol salão ao ar livre, no qual mandou colocar um tela gigante para a visualização de cinema encomendado às quartas feiras à noite. Tudo isto na selva, bem no interior. Era sempre uma festa quando havia torneio de futebol ou cinema semanais.

A Barragem era guardada por uma tropa de elite portuguesa denominada FLECHAS e também recordo a presença esporádica de algumas pessoas a quem se chamavam inspetores que penso serem da PIDE/DGS.

Os Flechas eram uma tropa portuguesa extremamente leal, maioritariamente constituída por pessoas nascidas em Angola, garante da segurança de milhares de pessoas. Após o abandono de Portugal das colónias – não a independência, como dizem por aí – foram deixados à sua sorte e sofreram horrores inimagináveis. A sua história ainda se há de fazer, Portugal terá de lhes demonstrar o reconhecimento devido e fará, qualquer português decente, envergonhar-se desse triste episódio da Nação Portuguesa.

Encontrava o meu pai ao almoço, à noite ao jantar, sendo umas das minhas ocasiões do dia preferidas quando íamos para o quarto, onde tínhamos longas conversas até adormecer. O resto do dia era passado com amigos da minha idade, livremente, mas entregue à família do meu amigo Chico dentro das áreas onde nos era permitido estar.

Um dia prevaricamos e resolvemos ir mais além. Fomos a um lago pantanoso infestados de jacarés, onde estava amarrado um barco meio podre. O nosso divertimento era saltar de um alto para o barco, movimentá-lo até onde a corda permitia e bater na cabeça dos jacarés que se aproximavam com os remos. A seguir era uma diversão ver quem pulava mais longe do barco até ao extremo da terra lamacenta, passando por cima da cabeça dos jacarés.

A brincadeira durou até chegar a mãe do Chico que, toda vermelha de aflição, nos deu um valente berro e levou cada uma para sua casa. No dia seguinte houve quem ficasse em casa de castigo e houve quem tivesse levado até uma surra dos pais. Eu apanhei um valente sermão, embora o meu pai tivesse percebido o disparate como inerente à idade.

Outra ocasião bem marcante foi o dia em que um jovem recém-chegado administrador da empresa encarregue da construção da obra deu um estalo a um trabalhador. Nesse mesmo dia, o meu pai expulsou o administrador da barragem e recambiou-o para Luanda.

Foram bons tempos, muitos felizes, impossíveis de descrever num espaço tão curto, em ligação com a natureza como só o interior de África pode dar. O convívio entras as pessoas, as praias, a temperatura, a visualização muito próxima de leões, pacaças, zebras, cobras, macacos e muitos outros animais era uma constante.

Um dia, num domingo de madrugada, houve um ataque à barragem quando o meu pai esteva em Luanda que foi prontamente defendida pelos Flechas, evitando qualquer morte. No entanto, muita gente pôs-se em fuga e houve até quem abandonasse a família. Lembro-me do meu pai com uma lágrima no olho, despedir-se de nós de madrugada e enfiar-se, sozinho, no seu carro para a obra da Quiminha porque era o seu máximo responsável e não podia deixar a gente com quem trabalhava à sua sorte.

Lembranças de juventude que me servem de lição até o dia em que partir para a companhia do meu pai, se Deus o quiser.


Autor: Joaquim Barbosa
DM

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16 setembro 2020