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“Setenta vezes sete...”

A correção fraterna e o perdão (temas da Liturgia da Palavra dos dois últimos Domingos) são duas realidades tão essenciais à vida, na sua expressão individual e comunitária, que andam de mãos dadas e, talvez por isso, aparecem associadas no “discurso eclesial” (Mt 18).

A correção fraterna exige delicadeza da parte de quem corrige e humildade da parte de quem é corrigido. A sua não aceitação leva à exclusão da comunidade (Mt 18, 17). Por seu turno, o perdão só pode ser total e radical (“setenta vezes sete” e “de todo o coração”) e é sempre inclusivo. Se a proposta de Pedro (v. 21: “até sete vezes?”) parecia já constituir um salto significativo (Jb 33, 29 sugere que Deus perdoa duas ou três vezes), a de Jesus dinamita toda e qualquer conceção quantitativa do perdão “e exige dos seus discípulos o perdão ilimitado, expresso através da cifra simbólica exorbitante do ‘setenta vezes sete’” (G. Ravasi, Secondo le Scritture, Anno A, p. 254). Além disso, apresenta-se em contraponto com a violência gratuita e cega (Gn 4, 24: “Se Caim foi vingado sete vezes, Lamec sê-lo-á setenta vezes sete”).

Setenta vezes sete” é uma expressão hebraica para sugerir um número ilimitado que aponta mais para a qualidade do que para a quantidade. Algo de semelhante é dito com os dez mil talentos (cada talento correspondia a 36 quilos de ouro), referidos por Jesus na parábola que, a propósito, conta. A aposta nesta exorbitância e no contraste (aquele a quem muito foi perdoado não é capaz de perdoar em pouco) sugere a grandeza do perdão divino, em claro confronto com o modo humano de proceder.

Do texto da parábola transparece a certeza do perdão de Deus, em coisas muito grandes, e a dificuldade do perdão humano, em coisas muito pequenas (cada denário pesa 12 gramas). E facilmente se conclui que, perdoados por Deus, não faz sentido que não perdoemos aos outros (“Perdoados, perdoamos” [Santo Agostinho]). Até porque, do perdão que oferecemos, depende o que de Deus recebemos: “Perdoa ao teu próximo o mal que te fez e os teus pecados, se o pedires na oração, serão perdoados” (Sir 28, 2); “Felizes os misericordiosos porque alcançarão misericórdia” (Mt 5, 7); “Perdoa as nossas ofensas como nós perdoamos a quem nos tem ofendido (...) Se perdoardes aos homens as suas ofensas, também o vosso Pai celeste vos perdoará a vós. Se, porém, não perdoardes aos homens as suas ofensas, também o vosso Pai vos não perdoará as vossas” (Mt 6, 14); “Tal como o Senhor vos perdoou, fazei-o vós também” (Cl 3, 13).

À exigência do perdão nas relações individuais (nos Anos Sabático e Jubilar, abrangia as próprias dívidas [Lv 25]), acresce uma não menor exigência de perdão entre as nações e as instituições, a única forma de esbater o fosso cada vez maior entre países ricos e pobres, como tantas vezes o tem repetido a Doutrina Social da Igreja e diversas instituições internacionais.

Termino citando um excelente texto sobre o perdão que me deixou a pensar: “perdoar faz-nos bem a todos nós que nos julgamos vítimas de dívidas impagáveis ou de ofensas inapagáveis. Jesus sabe que a vingança que não dá lugar ao perdão faz mais mal à vítima do que a ofensa do agressor. (...) Quem não perdoa faz mal a si próprio, alimenta o veneno que o mata. (...) Perdoar não significa branquear o mal, ignorar a injustiça, esquecer tudo, como se nada nos tivesse acontecido. Só o perdão, que dá mais do que aquilo que perdeu, pode curar o coração de quem é ofendido e de quem nos ofendeu. Ao dom do perdão recebido corresponde o dever de reparação, o esforço de mudança, o sinal da conversão” (Padre Amaro Gonçalo). O perdão é a melhor forma de correção fraterna!

*Professor na Faculdade de Teologia – Braga e Pároco de Prado (Santa Maria)


Autor: P. João Alberto Correia
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14 setembro 2020