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Democracia e pandemia (2)

1. No último artigo, alertámos para o rude golpe que a democracia portuguesa sofreu com o término dos debates quinzenais com o primeiro-ministro (proposta do líder da oposição, logo acolhida pelo PS) no Parlamento, que doravante serão de dois em dois meses (nem sequer de mês a mês). Ora, numa democracia, é aos que não estão no poder – às oposições – que cabe a insubstituível tarefa de controlo da acção governativa, por vários modos, entre os quais o de os governantes explicarem e justificarem as suas opções, que, desse modo, são assumidas perante o povo. É da própria natureza da oposição assim proceder; se o não fizer, falha no essencial. Após as eleições, os vencedores como que endereçam esta mensagem aos perdedores (oposições): estes, na dinâmica democrática de alternância governativa, poderão mais tarde ser os vencedores. É assim a democracia representativa tal como a analisaram grandes clássicos da politologia (Robert Dahl, Giovanni Sartori, etc.).

Também Karl Popper, no vol. I d’A Sociedade Aberta e os seus Inimigos (1945, traduzido 1993), esclarece que a grande vantagem do regime democrático reside na possibilidade de transição pacífica do poder, depondo e substituindo governantes sem derramamento de sangue: "A democracia oferece um inestimável campo de combate (…), pois permite reforma sem violência. Se, porém, a preservação da democracia não constituir a preocupação primordial (…), então as tendências antidemocráticas latentes, sempre presentes (que apelam para os que sofrem), podem provocar a derrocada da democracia". Se a oposição falhar no seu desígnio, alimenta os surtos antidemocráticos que pululam no seio da própria democracia.

2. Já depois de escrito o anterior artigo, lemos no jornal “Público” estas afirmações de Pedro Rodrigues (deputado do PSD): com o fim dos debates quinzenais, "o Parlamento português passará a ser um dos parlamentos dos países europeus com menor escrutínio da actividade do primeiro-ministro e do Governo. (…), na generalidade dos países europeus, os primeiros-ministros têm a obrigação de responder a questões dos deputados semanalmente, quinzenalmente ou, em menor número, uma vez por mês". E acrescenta: "a ideia de que o primeiro-ministro não deve ter a obrigação de responder regularmente às questões que lhe são colocadas pelos deputados significa a sobrevalorização do órgão executivo sobre Parlamento".

Ora, casos não faltam. Desde o que se passou com o sistema bancário – BPN, BPP, BES –, em que a derrocada acaba por recair sobre os contribuintes portugueses, aos escândalos noticiados (leia-se o excelente artigo de Vicente J. Silva no “Público” de 02/08, “O faroeste financeiro português”) sobre o Novo Banco (dizia-se o “banco bom” do BES, afinal pior que péssimo). Noutros domínios, temos a assinatura de 16 contratos (a que se somam os 14 subscritos em 2019) de exploração de minas (antes da publicação da nova legislação), ou a aposta do Governo no hidrogénio (contra o parecer público de cientistas) – como explicitámos no artigo anterior –, ou a catastrófica pretensão de tornar o cenário paradisíaco de Montijo – o mais rico santuário europeu de biodiversidade – num aeroporto complementar ao de Lisboa (publicámos aqui há um ano, “Montijo: aeroporto ou ‘apeadeiro’?”); hoje, com menos viagens (dada a pandemia), é imperativo aferir melhor solução (que há, e fundamentada). Há também necessidade imperiosa de monitorizar a aplicação das avultadíssimas verbas que virão da Europa – dada a hecatombe pandémica –, exigindo-se boas práticas de políticas públicas e privadas.

Do passado, duas calamidades crónicas são a vergonha de governos e oposições: a ferrovia, sistematicamente ao abandono, onde se dilapidaram milhões e milhões de euros (Espanha, não estava melhor, mas tem hoje comboios de alta velocidade a ligarem as grandes cidades, porventura a 2ª melhor ferrovia do mundo); depois, os incêndios, uma tragédia que todos os anos se abate sobre o País (a maioria noticiados como fogo posto): ora, nada se alterou nem a nível preventivo nem sancionatório (em 11/08, faz 2 anos, escrevemos aqui “Terrorismo de Verão”).

3. Montesquieu, na famosa fórmula Do Espírito das Leis, intuiu a essência dos contrapoderes: "Para que não se possa abusar do poder, é necessário que, pela disposição das coisas, o poder contenha o poder". As noções de contrapoder e de oposição são inerentes à exigência democrática da limitação do poder (desde o controlo da potência do aparelho dirigente do Estado à denúncia de circuitos de corrupção). Além da função de representação política (embora minoritária), é do sufrágio popular que a oposição parlamentar adquire legitimidade para exercer um contrapoder político face à maioria que o exerce. A relação poder/contrapoder é, na lógica democrática, dinâmica e reversível, pois um sistema pluripartidário e concorrencial implica alternância política do poder – essa a “utilidade constitucional” da oposição.

O autor não escreve segundo o denominado acordo ortográfico


Autor: Acílio Estanqueiro Rocha
DM

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5 agosto 2020