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O estranho caso de Mr. Medina

Há um sabor amargo que deve estar a percorrer a espinha de muitos portugueses que, como eu, olharam para o exemplo da capital e do “talentoso” autarca de Lisboa, interrogando-se sobre o seu aparente sucesso e como ele foi transformado numa arma apontada em riste ao Norte, que uma não menos irresponsável televisão catalogou, como sendo resultado de uma “população menos educada, mais pobre e envelhecida”. Estávamos a 14 de Abril, a região Norte encharcava-se de casos, enquanto na “República da Cigarra” reinava uma estranha auréola de felicidade e contentamento, antípoda da catástrofe que nos afetava aos milhares. O sucesso fazia parangonas na imprensa internacional, carregada de elogios. Por cá, fez-se o trabalho de casa: a humildade – um talento raro por estes dias – remeteu-nos para o recolhimento com naturalidade, permitindo que o sacrifício tivesse expressão real nos resultados da pandemia, criando as condições para o ressurgir da força do trabalho, do seu resultado em produtividade e valor acrescentado, empregando o talento de uma das populações mais jovens da Europa. O orgulho de uma cidade bem-comportada (Lisboa) representava o país da formiga, abusivamente, que nunca deixou de trabalhar para que nada de essencial faltasse e até sobrasse para alimentar a visão de sucesso que do Terreiro do Paço era vendida por esse mundo fora. Neste “filme”, em que a personagem principal, (Mr. Medina) se parece com Dickie Greenleaf, imaginado pelo realizador Anthony Minghella, em O Talentoso Mr. Ripley(1999) o ator Jude Low, sintetizou o seu papel: “O meu pai constrói barcos, eu navego neles”. 31 anos depois, o filme repete-se: tudo esmorece, descobre-se uma região onde prolifera uma pobreza “irritante”, um carrocel habitacional degradante, ajuntamentos glorificadores da rebeldia, uma enorme falta de responsabilidade e uma vontade imensa de assumir o sucesso como uma certeza absoluta, própria do talento especial de decisores alegadamente bem parecidos, bem-falantes e bons a criticar, ao primeiro sinal de alarme. De repente, com a história invertida, tal como Mr. Ripley, o país descobre que está confortavelmente contaminado, graças à mobilidade e à verdade dos números e dos factos de Mr. Medina que, espantado pelo que estava a acontecer à sua cidade e região, dispara em todas aas direções, não se importando que Lisboa se confunda com o resto do país, apontado culpados em tom ameaçador e lançando farpas onde dantes reinava uma desconcertante unanimidade. A lição, que transformou o “aluno bem-comportado”, visto como exemplar, num país tratado todo por igual, é agora o espelho de como não vale apena cantar vitória antes do tempo. Nem a mais antiga das alianças convenceu os súbditos de Sua Majestade. A agravar a sua irresponsabilidade, que transformou por igual o que era diferente, Mr. Medina percebeu que contaminou o país com o seu encanto de Sereia, prejudicou a economia e deixou-se vislumbrar pelo equívoco em que se transformou o processo de Comunicação em torno da pandemia. O que se segue é uma paródia onde as personagens procuram desesperadamente um culpado ou dois, enquanto a honestidade dos números esbarra com a crueldade da concorrência dos vizinhos, capazes de gerir a realidade a diversas dimensões. O que fica deste drama, é uma arma de azedume que todos carregamos numa espécie de todo aparente em que fomos integrados sem ser achados. Fica, para já, como lição, a nobreza da palavra dada que nada parece valer quando se atiram achas para a fogueira como se o problema fosse dos outros e não da nossa casa que para uns é nacional e para outros, é mais parecido com o slogan do ex-autarca de Menezes: sulista e elitista. A honestidade dos números evocada pelo pai do Delfim para se sentir ofendido com a decisão britânica, é apenas um sentimento frustrante, que tem na sua génese, por culpa própria, o problema eterno da Comunicação. Sendo esta uma questão de Estado que nos afeta a todos, está na hora de assumir que à mulher de César não basta ser séria, é preciso parecer e nesse capítulo, temos muito que aprender com os vizinhos que, desejosos de navegar nas nossas águas, apressaram-se a aprender a lição e tudo fizeram para parecer o que não são.
Autor: Paulo Sousa
DM

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5 julho 2020