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Do Santo António da Porta ao dos Esquecidos

Costuma dizer-se que santo da casa não faz milagres, para significar que as pessoas não costumam valorizar o que têm por perto, ao pé da porta, na sua própria casa ou na sua própria terra. E há até um suporte bíblico para este dito proverbial, pois S. Marcos põe na boca de Jesus a afirmação de que o profeta não é reconhecido na sua própria terra. (Mc 6:4) Mas, como em tudo na vida, há excepções. E o tema do meu artigo de hoje versa justamente sobre a “excepcionalidade” do que em tempos ocorreu com uma imagem do santo português, falecido em 13 de Junho de 1231, em Aracela, Itália, existente no antigo Convento dos Franciscanos, em Barcelos, no edifício que actualmente é pertença da Santa Casa da Misericórdia local. Como é sabido, em 30 de Maio de 1232, menos de um ano passado sobre a sua morte, o nosso querido compatriota foi canonizado pelo Papa Gregório IX, sendo certo que, já em vida e logo nos primeiros dias após a sua morte, o povo o havia canonizado, com a proclamação, pelas ruas das vilas e cidades onde o mesmo exercera a sua acção apostólica, de que “Morreu o Santo! Morreu o Padre Santo!” A partir de então, o culto e veneração de Santo António espalharam-se por toda a cristandade. E de tal modo que se pode afirmar, sem exagero, que é hoje talvez, entre os santos de projecção universal, o mais popular de todos: dedicação de igrejas e capelas, imagens na maior parte dos templos e em muitíssimas casas particulares, pinturas, esculturas, azulejos, cânticos, festas, peregrinações e a criação de inumeráveis topónimos e antropónimos por todos os cantos do mundo! É neste enquadramento que tem de entender-se a expansão do franciscanismo em Portugal, na Europa e no mundo, sem esquecer que foi em Lisboa que nasceu e que, em 1220, foi em Coimbra, no Convento de Santa Cruz, que foi ordenado sacerdote e que, pouco tempo depois, vestiu o hábito franciscano, no eremitério de Santo Antão dos Olivais. Pois bem, em Barcelos, minha terra, o primeiro convento da Ordem dos Franciscanos Menores foi fundado em 1505, no monte da Franqueira, a instâncias de D. Jaime, 12º Conde de Barcelos e 4º Duque de Bragança, e dado aos Padres Primitivos da Soledade, pelo provincial Frei João Chaves, como relata o Abade do Louro, Domingos Joaquim Pereira, na “Memória Histórica da Vila de Barcelos, Barcelinhos e Vila Nova de Famalicão” que sigo. Porém, como os moradores de Barcelos pretendessem um convento na (então) vila e não tivessem conseguido que os padres da Ordem de S. Bernardo, do convento de Fiães, aqui viessem instalar-se, como chegou a estar determinado por régio alvará de 1641 e por subsequente acto formal de empossamento, trataram com os padres Capuchos do Convento do Bom Jesus do Monte da Franqueira, a mudança para o Campo da Feira (ou do Salvador). Por provisão régia de 1 de Julho de 1648, o Rei D. João IV concedeu o referido local aos religiosos da Franqueira, onde foi lançada a primeira pedra do convento em 1649, no sítio onde hoje existe o imponente edifício da Santa Casa da Misericórdia de Barcelos (SCMB) e onde também está instalado o hospital de Barcelos. Nestas novas instalações, ocupadas pelos primeiros religiosos nos princípios de Fevereiro de 1652, sem que o edifício estivesse ainda de todo acabado, a figura de Santo António ocupava naturalmente um lugar de relevo. Assim é que havia duas imagens suas no retábulo mor e outra na Capela da Portaria, que lhe era dedicada e que ficava mesmo defronte da porta de entrada do edifício conventual. Entretanto, em meados do século seguinte (1751-1752), foram levadas a cabo obras de ampliação das oficinas e celas e de alterações e melhoramentos na igreja, tendo-se então colocado sobre aquela porta da portaria, em nicho envidraçado, a imagem de Santo António. Ora, foi precisamente no período que medeia entre a fundação do convento e a sua extinção em 1834 – com o decreto de Joaquim António Aguiar, de 30 de Maio, que extinguiu as ordens religiosas – que, com maior intensidade e fervor, os barcelenses viveram a devoção a Santo António, fixada principalmente nas imagens da Capela da Portaria e do Santo Antoninho da Porta, existente no dito nicho. Isso mesmo é atestado pelos inúmeros amuletos votivos em cera e pelos ex-votos (painéis pintados a óleo por causa de uma promessa ou de um voto) que então estavam pendurados nas paredes e colocados no altar da Capela da Portaria, em sinal de gratidão. Entre estes, recordo aqui um muito curioso, de Manuel Freire, Tenente Coronel das Milícias do Brasil – citado por Correia Góis, no Domingo passado, na sua coluna de opinião do Diário de Coimbra – que relata o seguinte episódio: «em 1724 aquando um preto, de nome António, caiu num fosso com “83 palmos” de altura e ao evocar-se S. António da Porta, o sinistrado saiu do fosso sem qualquer lesão e logo Manuel Freire apressou-se a mandar pintar o milagre num painel (desaparecido) para pendurar na capela de Barcelos». Repare-se que este voto de agradecimento ocorreu na então colónia do Brasil, com um negro, em tempo de escravatura! Muitos outros casos houve de promessas e oferendas ao Santo, quer por cura de enfermidades várias quer até por libertação da prisão, mas que por limitação de espaço me dispenso de referenciar. (Continua na próxima semana)
Autor: António Brochado Pedras
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19 junho 2020