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Amargura do luto não-feito… ainda

Decorriam os primeiros dias desta sequência ligada ao ‘covid-19’, quando alguém, ligado à área da assistência em saúde, referia: o pior de tudo isto vai ser o que se refere ao luto não-feito, pois muita gente nem vai ter tempo de se despedir dos seus defuntos e tão pouco será possível ter um funeral a condizer, onde o tempo de luto possa ser vivido convenientemente. De facto, nestes dois meses de confinamento, de estado de emergência ou de calamidade, temos visto certos sinais que denotam algo de preocupante e que trarão, num futuro muito próximo, consequências consideradas imprevisíveis. Ao jeito de ilustrar aquilo que desejo trazer à colação para aqui refletir, deixo duas situações, por sinal ocorridas em Braga: a morte e sepultamento de um professor universitário e a ocorrência na reabertura do cemitério municipal… um e outro caso podem ser paradigmáticos de toda a envolvência em que nos encontramos, mesmo sem disso nos darmos, totalmente, conta. Sobre a ‘oportunidade’ do falecimento há cerca de duas semanas do dito padre-professor de matemática talvez tenha sido como que por ele ‘escolhida’, tal a discrição do mesmo e a subtileza em que nem déssemos conta da sua partida. Amigos dele não puderam participar nas exéquias, pois o estado de emergência a isso obrigava. Daquilo que eu dele conhecia – pelo menos há anos atrás – foi como que um esgueirar-se de mansinho sem déssemos por tal… Quantos tantos outros falecidos nestes tempos obrigaram ao afastamento da presença nos derradeiros momentos terrenos! Quantos, mesmo sem terem nada a ver com a doença em curso, foram levados na onda de irem sem despedida humana e psicológica! Quantos foram anonimizados e reduzidos quase ao esquecimento! Sobre aquilo que aconteceu, por estes dias, no acesso ao cemitério de Braga podemos ver nesse caso algo que revela muito mais do que uma mentalidade ou uma mera coincidência. O congestionamento de pessoas teve a ver muito mais do que uma menos boa (ou exagerada) organização no acesso às entradas. Teve a ver muito para além da confusão de muitas pessoas ao mesmo tempo. Teve a ver com algo mais do que um recuperar o tempo perdido em não poderem honrar os seus falecidos… muitos deles sepultados segundo os condicionamentos deste tempo. Efetivamente a enchente na reabertura do cemitério bracarense revela algo que trará à memória de quantos viveram a não-despedida dos seus falecidos, pois a rutura em relação à morte é algo que tem de ser assimilado no enquadramento psicológico da separação, fazê-lo de forma abrupta custará a ser digerido e, sobretudo, a ser enquadrado no nosso – é de todos e não só dos crentes – processo de luto, de choro e até mesmo de alguma religiosidade. = Podemos, agora, colocar algumas questões sobre todo o processo em que temos estado, de uma forma ou de outra, envolvidos, na medida em que esta pandemia viral veio pôr a nu tantos dos fantasmas e quantos dos mitos que nos envolvem, mesmo sem disso nos apercebermos. Onde está a segurança tão adulada nas nossas questões vitais? Não seremos mais vulneráveis do que aceitamos, de verdade, ser? Como podemos ser afetuosos em tempo de perigo de contágio viral? Como poderemos exprimir de forma simples, serena e sóbria os sentimentos de dor, de amargura e de saudade pela partida dos nossos falecidos? Até onde irá a nossa capacidade de conter as lágrimas ao vermos separarem-se de nós aqueles a quem não conseguimos exprimir o nosso afeto, visual ou táctil, nos derradeiros momentos sob condição terrena? Como nos poderemos cristã e afetivamente ajudar a fazer o luto de entes não-vistos em processo de falecimento? Será que o recurso às memórias fotográficas pode ser melhor aproveitado nesse processo de luto atropelado e, talvez, demasiado rápido? = Mesmo que em jeito de sugestão e sem exploração sentimental de nada nem de ninguém talvez devamos, nos momentos de oração comunitária, introduzir um pouco mais a memória daqueles que partiram pelo recurso às fotos e outras recordações, tentando atenuar as agruras da despedida feita ou não-concretizada. Não pretendemos prolongar sem nexo estados de ansiedade menos bem vividos, mas podemos, segundo critérios cristãos saudáveis, ajudar a separação daqueles/as que amávamos e de quem temos memória grata. Destaque Talvez devamos, nos momentos de oração comunitária, introduzir um pouco mais a memória daqueles que partiram pelo recurso às fotos e outras recordações, tentando atenuar as agruras da despedida feita ou não-concretizada.
Autor: António Sílvio Couto
DM

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11 maio 2020