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Do Covid-19 às plagas de Tróia

A emergência de saúde pública que se vive é arrasadora e, por isso, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a crise do COVID 19 como sendo uma pandemia. Todos os países europeus estão em alerta máximo! E não é para menos, pois a catástrofe começa a assumir proporções bíblicas. O grito de revolta da Natureza aí está, implacável e universal. Sem pedir licença! Basta, parece dizer-nos a cada instante. Apesar disto, não devemos esquecer outras pandemias anteriores que os senhores do mundo vinham orquestrando, com nefastas consequências a todos os níveis: falamos, como é evidente, das constantes guerras comerciais que tiveram por protagonistas, sobretudo, a República Popular da China e os Estados Unidos da América, com consequências em muitos outros países de todos os continentes. As migrações de pessoas, aos milhares, em direcção às fronteiras da europa, preenchiam os noticiários até há pouco, agora interrompidos por outra crise maior! E isto para não falar da interminável guerra da Síria e um pouco por todo o Médio Oriente. Apesar do silêncio noticioso… Tudo porque uma meia dúzia de pessoas que dominam o planeta, cuidando que nada lhes chega, que o seu conhecimento científico e o seu dinheiro os põe a salvo de todos os males deste mundo. E eis que, de uma penada, de forma inaudita, um vírus, embora já conhecido, invisível a olho nu, decide atacar e não há armas capazes para o dominar: somos todos iguais, ricos ou pobres; brancos, pretos ou amarelos; católicos, hindús, protestantes, muçulmanos… Norte, Sul, Este e Oeste. O COVID 19 a todas as pessoas trata por igual. E a exibição da soberba orgulhosa dos poderosos, julgando-se inatacáveis, cai por terra, de forma assombrosa e inesperada. Nem eles próprios escapando ao flagelo desta peste inaudita! Mas nem assim deixam de pensar na melhor forma de enriquecer com a desgraça alheia. E é perante estes factos que a nossa memória nos transporta até tempos muito recuados, anteriores à nossa era, planando sobre um dos grandes acontecimentos fundacionais da Europa: a Guerra de Tróia. Este acontecimento, amplificado por uma riquíssima tradição lendária, viria a estar na origem dos Poemas Homéricos, os primeiros livros da literatura europeia: primeiro, a Ilíada; depois, a Odisseia, o poema do regresso dos heróis, onde se cantam as façanhas do retorno de Ulisses à sua amada Ítaca e aos braços da sua querida esposa, Penélope. A Ilíada é um poema da guerra, que nos relata o assalto final à fortaleza de Tróia, que havia acolhido, ternurenta, o seu príncipe Páris, perdidamente apaixonado por Helena, que a havia arrebatado aos braços de seu marido Menelau, rei de Esparta. E com esse acto irreflectido, de um coração apaixonado, arrastou para uma guerra interminável o reino de Tróia contra os senhores de toda a Grécia, unidos em torno do grande rei de Micenas, Agamémnon. Passaram-se dez anos e o exército dos Aqueus mantinha-se acampado nas plagas de Ílion (daí Ilíada). Inesperadamente, uma peste alastra pelo acampamento e vai dizimando os soldados: «as piras dos mortos ardiam continuamente» (Ilíada, v. 52). Atónitos, pensam no regresso a casa. Porém, o herói Aquiles, rei dos Mirmidões, ao décimo dia de tão sangrenta ceifa, toma a decisão de reunir a assembleia para se ouvir «Calcas, filho de Testor, de longe o melhor dos adivinhos» (v. 69). Corajoso, assim falou, afirmando que tudo isso sucedia «por causa do sacerdote (Crise) que Agamémnon desconsiderou», pois «não libertou a filha nem quis receber o resgate». E conclui: «por isso nos dá desgraças o deus que acerta ao longe. / E não afastará dos Dânaos a repugnante pestilência, até que ao querido pai seja restituída a donzela de olhos brilhantes…». Agamémnon, comandante supremo dos Aqueus, «o pastor do povo», ressabiado, não se coibiu de afrontar os desígnios divinos e reduzir à sua mais ínfima condição humana Criseida, a filha de Crises, sacerdote de Apolo. A soberba e arrogância dominadoras, nas mãos de ímpios governantes.
Autor: António Maria Martins Melo
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6 abril 2020