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“É mais fácil matar do que tratar”

1.Enquanto no Parlamento se discutia qual a melhor proposta para aplicar a morte assistida a um doente que, em momento de depressão e desânimo de viver, pediu para morrer, estava a conversar sobre isso com uma médica experiente e de bom senso que me dizia, no seu consultório de trabalho: “Sabe, é mais fácil matar do que tratar... Tratar exige saber, dedicação e persistência, enquanto dar a injecção letal e esperar que a pessoa morra é apenas um acto de rotina, para quem não tenha sentimentos”. Tem razão… Para tratar os doentes que mais sofrem é preciso procurar saber fazê-lo e fazê-lo com o coração. E isso dá trabalho e exige dedicação e sentimento.

No Sábado passado, o jornal Expresso publicou uma entrevista com o Dr François Damas, médico Belga que já aplicou a eutanásia a mais de 200 doentes, no Hospital de Liége. Para mim, é uma entrevista cheia de contradições que nos introduz num mundo frio e de terror transformado em rotina. Confesso que li um pouco e depois parei, só retomando essa leitura 4 dias depois. Dessa entrevista, queria respigar uma afirmação desse médico que está ali para ver se todos os documentos estão em ordem e depois matar (ver pg 27): “A maioria dos doentes o que quer é cuidados paliativos bem conduzidos…”.

Perguntaram-lhe, então, porquê a eutanásia. Ao que ele respondeu: “Se os doentes fossem bem acompanhados, a eutanásia teria desaparecido… mas não foi o que aconteceu”. Isto diz tudo sobre a situação que se passa, embora haja outros motivos políticos por trás. Este médico belga informou ainda que, “na Bélgica, morrem anualmente cerca de 110 mil pessoas e, dessas mortes, 2,5% são por eutanásia, metade do que acontece na Holanda…”.

2. Confesso que, neste dia, senti que se confirmam os pressentimentos de que se está a viver um tempo de decadência humanista e de perda de sentido da vida. E recordei-me de uma expressão quase profética de Viktor Frankl, um sobrevivente dos campos de concentração nazis que ficou mundialmente conhecido, em que ele dizia que “cada vez mais as pessoas têm melhores meios para viver, mas não têm uma razão pela qual viver…”. É verdade. E isto deve fazer pensar melhor os que têm responsabilidade nessas áreas. Vivemos num tempo cada vez mais veloz em termos de comunicação, mas também cada vez mais incerto e de solidão, apesar de toda a tecnologia de informação à distância e onde o suicídio aumenta e quase ninguém se preocupa em parar para pensar nas carências que estão aquém desses sentimentos. Até mesmo em termos de oferta de religião, pouco mais se vê do que rotinas estilizadas (há quem lhes chame ritualizadas) mais ou menos estagnadas no tempo. Disto se conclui que, hoje, mais do que tradicionais práticas, faz falta um anúncio carismático de “boa nova” que desperte e apaixone os corações e os ajude a descobrir causas pelas quais valha a pena viver, que estimule a descobrir o sentido da vida e a sua beleza, mesmo nas situações de sofrimento. Talvez hoje se viva mesmo um tempo e um sentimento de vazio pós-modernista que, à falta de um ideal, procura justificar o auto-suicídio.

Tal como num fim de época de elevada civilização, as preocupações existenciais de hoje não vão muito além da eterna juventude e do prazer, voltando-se para si próprio. E a ideia que se percebe é que se mate tudo o que for defeituoso ou velho, porque não tem lugar neste modelo de cultura anti-cultura. Sem nunca se saber onde é que estes limites podem ir parar.

Achei significativo que as Seguradoras ficassem alarmadas com a eutanásia, porque a gula dos prémios pode levar a sacrificar os seus titulares… como já tem acontecido. Nunca se sabe até onde isto pode levar.

3.É neste contexto que me ocorre a figura de Viktor Frankl e do seu modelo de psicanálise existencial. Que diria ele, que esteve durante três anos num campo de concentração e lá sofreu e perdeu os pais, a esposa e o irmão, mas que nunca desistiu de lutar pela vida e aprendeu com o sofrimento a descobrir essa grandeza de viver? Que diria ele sobre o vazio de pensamento humanista e de valores perante este sem-sentido da vontade de legalizar a morte provocada? Ficaria, certamente, arrepiado ao ver esta campanha de procurar justificar matar quem sofre porque não encontra quem os apoie como deve ser, como acima referiu um dos médicos de serviço da eutanásia, na Bélgica. Percebe-se que estamos a viver um tempo com uma filosofia de vida decadente e de perda de valores humanistas. Há receio de falar em espiritualidade e sentido da vida. Ora, esses conceitos não têm apenas um sentido religioso, mas filosófico e cultural também. E, voltando ao que atrás disse, não se pode responder a esta cultura decadente de valores com uma prática de rotinas que não sejam carismáticas.

Destaque

Estamos a viver um tempo com uma filosofia de vida decadente e de perda de valores humanistas. Há receio de falar em espiritualidade e sentido da vida.


Autor: M. Ribeiro Fernandes
DM

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23 fevereiro 2020