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A semana do deslumbramento tecnológico

Sem uma vida interior, a sociedade será somente bancos ou Internet, feita não por indivíduos, mas por pontos ou arrobas que comunicam no Facebook; isso não será interessante e pode afundar-nos no caos”. A afirmação da linguista e psicanalista Julia Kristeva é citada na edição de ontem do Expresso na entrevista que a jornalista Luciana Leiderfarb fez à autora do extraordinário Étrangers à nous-mêmes (Paris: Fayard, 1989) e de outras obras relevantes, editadas em Portugal em muitos casos.

Trata-se de uma chamada de atenção particularmente pertinente nestes dias em que, na capital de Portugal e nas páginas dos jornais, se manifestou um inexcedível deslumbramento tecnológico por um evento, a Web Summit, que, em alguns momentos, se assemelhava a uma assembleia de uma seita de fanáticos. Estes convites a uma precaução caem, talvez, em saco roto, mas é benéfico haver quem os formule.

O escritor francês Jean d’Ormesson, numa entrevista concedida, há alguns anos, à revista La Vie, a propósito dos dias de Todos os Santos e dos Fiéis Defuntos, referia-se também aos benefícios dessa vida interior, designadamente em momentos de apuro. Questionado sobre a circunstância de não ter podido ler enquanto esteve doente por culpa de um cancro, o “escritor da felicidade com o culto dos mortos”, tal como o classifica a revista, diz que foi salvo pela poesia: “Criei uma pequena biblioteca, recitando alguns versos na minha cabeça. Reconstituí cenas inteiras de Racine e Corneille”. Considerando exagerado dizer que tal é uma consequência de um culto dos mortos, o escritor julga que se trata de uma verdadeira presença do passado, de assumir um legado. Daqui guardou Jean d’Ormesson o que classifica como uma grande interrogação: “A herança continuará para além da minha geração?” É que, acrescenta, “um dos dramas contemporâneos decorre do facto de a comunicação, tão invasiva, não ser vertical. Ela abandonou o passado e a transcendência. O Facebook é uma comunhão horizontal e sem Deus. Riem-se do meu gosto das citações. Mas, para mim, trata-se de um modo de fraternidade com Kant ou Spinoza”.

As críticas às redes sociais são abundantes e é sintomático que uma grande parte dos argumentos contra elas seja subscrito por quem as conhece muito bem e não por aqueles que mal sabem ou ignoram o que são e para que servem. Outras inovações – como a electricidade ou os caminhos-de-ferro – suscitaram igualmente críticas e inquietações, mas há algo de novo em relação às imprecações contra as presentes novidades tecnológicas: as invectivas são manifestadas por vários daqueles que as ajudaram a criar.

Uma das vozes que se tem pronunciado mais vigorosamente contra as redes sociais é Jaron Lanier, um cientista computacional e especialista em realidade virtual, conceito que tem a fama de ter cunhado. Em Ten arguments for deleting your social media accounts right now (Nova Iorque: Henry Holt and Company, 2018), apresenta e explica detalhadamente as razões por que as redes sociais se afiguram nefastas: 1. Estás a perder o livre arbítrio. 2. Renunciar às redes sociais é a melhor maneira de renunciar à loucura do nosso tempo. 3. As redes sociais estão a converter-te num idiota. 4. As redes sociais estão a minar a verdade. 5. As redes sociais estão a esvaziar de conteúdo tudo o que dizes. 6. As redes sociais estão a destruir a tua capacidade de ser empático. 7. As redes sociais fazem-te infeliz. 8. As redes sociais não querem que tenhas dignidade económica. 9. As redes sociais tornam impossível a política. 10. As redes sociais aborrecem a tua alma. Para Jaron Lanier, o que nos ameaça não é a Internet, nem os smartphones; o perigo encontra-se no modelo económico das redes sociais que obtêm lucros dos clientes que estão prontos a pagar para modificar o comportamento de alguém. É por isso, diz ele, que a eficácia de uma publicidade não é aferida pela quantidade de produtos vendidos, mas pelo modo como o comportamento dos consumidores corresponde aos apelos das marcas. Na única obra do autor editada em Portugal, Você não é um gadget (Lisboa: Arcádia, 2011), Jaron Lanier explica que o empenho da tecnologia em ir transformando as máquinas em “pessoas” contribui para que as pessoas se transformem em máquinas. Para o autor, as tecnologias são extensões de nós próprios e as nossas identidades podem ser alteradas por uma miríade de gadgets. “É impossível trabalhar com informação tecnológica sem se ficar igualmente implicado em engenha­ria social”.

Temos de chegar ao nível adequado de ter a democracia a enquadrar a tecnologia e a dizer: ‘É assim que deve servir-nos’”, afirmou a comissária europeia Margrethe Vestager na Web Summit. Disse ela ainda: “Temos discutido a fundo, no mundo real, o que queremos aceitar e o que não vamos aceitar. Simplesmente não percebo por que não é da mesma forma no mundo digital”.

Sim. Não se percebe.


Autor: Eduardo Jorge Madureira Lopes
DM

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10 novembro 2019