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Ser gago tem (pelo menos) uma vantagem

1. Ser gago não traz só inconvenientes. Quem me conhece sabe que digo isto sem qualquer ironia. Eu próprio sou gago. E fui gago profundo até para lá dos vinte anos. 2. Vivi, portanto, uma parte considerável da minha existência em quase silêncio ou tartamudeando – com muita tortuosidade –o que pretendia dizer. Tendo lido bastante sobre o tema, aprendi que há um conjunto de factores – psicossomáticos – que podem estar na origem da gaguez. 3. Confesso que nunca me convenceu a centralização da gaguez na questão dos «nervos». Por dois motivos principais. Primeiro, porque – por experiência o digo –, muitas vezes, estava completamente calmo e, mesmo assim, gaguejava. E, em segundo lugar, porque há pessoas que, mesmo nervosas e descontroladas, falam com uma desenvoltura de espantar. 4. Não se pense, porém, que ser gago só complica. A gaguez obriga-nos a procurar com mais cuidado as palavras mais adequadas. Ou, pelo menos, a estacionar nas menos inadequadas. Há, entretanto, uma vantagem que sobreleva todas as outras. Partilho-a sem presunção, com base numa vivência contínua de anos. 5. É que se nós, gagos, temos dificuldade em terminar uma afirmação verdadeira, imaginem como nos sentiríamos se quiséssemos verter uma afirmação falsa. Nem a conseguiríamos iniciar. «É pena que muitos não sejam gagos!» Assim reagiu, com humor, um bom Amigo a quem, há dias, fiz chegar esta constatação. 6. É claro que há quem não gagueje e seja incapaz de mentir. Não é preciso ser gago para ser verdadeiro. Mas a «aflição» de um gago a articular um discurso falso constituiria a «denúncia» mais difícil de rebater. 7. Podemos estar, pois, em presença de uma «ferramenta» adicional para reaprender a imperecível lição de Natanael, inserida no Evangelho de São João. Jesus faz a este Seu seguidor o maior elogio possível: «Eis um homem em quem não há fingimento» (Jo 1, 47). 8. Nós, gagos – mesmo quando não tropeçamos nas palavras –, somos incapazes de esconder que o somos. Mas há momentos que nos sentimos inibidos e até bloqueados. Sofrer por ser gago e ser alvo de observações jocosas e depreciativas (o que, graças a Deus, nunca me aconteceu) só contribui para que a gaguez alastre. 9. Será, contudo, que o problema está só em quem é gago? Não teremos todos o dever de ouvir os outros conforme a expressão que lhes é própria? 10. Paradoxalmente, é quando se aceita a gaguez que mais facilmente se pode deixar de gaguejar. A melhor ajuda encontrei-a num texto muito antigo: «Se quer deixar de ser gago, goste de ser gago»!
Autor: Pe. João António Pinheiro Teixeira
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5 novembro 2019