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Autonomia e poderes hierárquicos do MºPº:

O jornal Público, na sua edição de anteontem, noticiou que o Conselho Superior do Ministério Público (CSMP), por proposta ou sugestão de um dos seus membros, o advogado Arala Chaves, vai discutir, na reunião agendada para a próxima terça-feira, o tema da conciliação da autonomia dos procuradores da república com os poderes da hierarquia dessa magistratura.

De acordo com a mesma notícia, na base de tal sugestão esteve a preocupação manifestada pelo proponente “sobre as notícias que têm vindo a público sobre a interferência da hierarquia na investigação criminal”, sendo também referido que “essa posição seguiu-se à divulgação pública de que o Director do Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP), Albano Pinto, travou, por despacho, a inquirição do primeiro-ministro (PM), António Costa, e do Presidente da República (PR), Marcelo Rebelo de Sousa, como testemunhas no caso de Tancos”, invocando a “dignidade e o prestígio do cargo” de um e de outro e ordenou aos três procuradores titulares do inquérito que “limpassem” dos questionários a enviar por escrito para João Cordeiro, ex-chefe da Casa Militar do PR e para Rovisco Duarte, ex-chefe do Estado Maior do Exército, qualquer referência a Marcelo Rebelo de Sousa, por não ter “utilidade”.

Apesar do respaldo da procuradora-geral da República (PGR), Lucília Gago – que considerou aquela intervenção hierárquica como feita no “exercício das funções directivas” –, estas práticas mereceram a firme oposição do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP) que as reputou de “ilegais” e “à margem do Código de Processo Penal”, instando Lucília Gago e o CSMP a proibirem e punirem tais práticas.

Perante o antagonismo destas posições e a bem do Estado de Direito, impõe-se uma discussão profunda sobre os poderes da hierarquia do MºPº e a sua articulação com a autonomia de que esta magistratura goza nos termos constitucionais e legais. Até porque, competindo ao MºPº a defesa da legalidade democrática, tem de ser o primeiro a cumpri-la.

Entendo, por isso, que não devo furtar-me a emitir a minha opinião sobre os factos noticiados, para mais sendo eu advogado há 42 anos e havendo desempenhado antes, durante cerca de quatro anos, o cargo de delegado do Procurador da República.

Se vivêssemos num regime autocrático, como o que existiu até ao 25 de Abril de 1974, compreenderia que, perante uma ordem semelhante àquela do director do DCIAP, os agentes do MºPº, detentores de uma aparente autonomia e sujeitos a um musculado controlo hierárquico, não tivessem outra alternativa que não a de a cumprir, sob pena de um processo disciplinar que, com toda a certeza, levaria à expulsão da magistratura.

Agora, num regime com uma constituição democrática e com leis aprovadas no quadro constitucional, não posso entender nem aceitar que a hierarquia do MºPº dê ordens ilegais aos procuradores subordinados nos termos e condições das que foram relatadas no processo de Tancos, sem ser sancionada. Nem, tampouco, que estes subordinados não tenham recusado o cumprimento dessas ordens ilegais, muito embora perceba melhor – mas também não aceite – o receio destes últimos de arriscar um processo disciplinar, sempre desagradável mesmo quando os processados estão cientes da razão que lhes assiste.

E isto porque, sendo a responsabilidade, a hierarquia e a inamobilidade princípios estruturantes da magistratura em do MºPº e gozando a mesma de estatuto próprio e autonomia em relação aos demais órgãos do poder central, regional e local, a subordinação hierárquica a que está sujeita – consistente na obrigação dos magistrados de grau inferior de acatarem as directrizes, ordens e instruções recebidas dos de grau superior –, é regulada nos termos previstos no Código de Processo Penal, no que aos processos de inquérito diz respeito.

Ora, nos termos dos artºs 278º e 279º deste diploma, só os despachos de arquivamento proferidos por estes magistrados são passíveis de apreciação posterior, sujeitos que estão ao controlo (oficioso ou provocado) do imediato superior hierárquico.

É esta também a disciplina que o Estatuto do Ministério Público (EMP) consagra, quer o vigente quer o novo que irá entrar em vigor em 01/01/2020.

Não tenho, por isso, dúvidas de que, tal como defende o SMMP, ao superior hierárquico estão vedadas práticas como as de dar ordens ao magistrado titular de um inquérito para este acusar ou arquivar um processo contra determinada pessoa e de interferir nas diligências de produção de prova, na constituição de arguidos ou na inquirição de testemunhas, designadamente determinando ou sugerindo o teor de perguntas ou a sua alteração ou supressão.

Por consequência, os poderes directivos da hierarquia em investigações criminais concretas têm limites legais e constitucionais. Assim sendo, no caso de Tancos, também se me afigura que os poderes do director do DCIAP tinham de circunscrever-se à possibilidade deste avocar o processo, chamando a si a direcção da investigação ou entregando o caso a outra equipa de magistrados.

Exorbitando os seus poderes hierárquicos, Albano Pinto cometeu, a meu ver, uma ilegalidade pela qual deveria ser sancionado. A PGR, por sua vez, apoiando o acto do seu subordinado, deu ao país um péssimo exemplo e um mau sinal: o do desrespeito da lei e o de subserviência da hierarquia do MºPº relativamente ao PR e ao PM.

Faz, por isso, todo o sentido pedir que o CSMP intervenha para pôr ordem na casa. E quanto antes!


Autor: António Brochado Pedras
DM

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25 outubro 2019