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A obsessão pelo aplauso estrangeiro

“Coimbra, 22 de Março de 1985. O aplauso estrangeiro. A impressão que nos causa e o desvanecimento com que a imprensa o celebra! Não é a prova real de uma pressuposta universalidade que nos importa. É a triste necessidade que temos de que os outros deem certeza aos nossos juízos incertos”, escreveu Miguel Torga, no seu Diário. Volvidas três décadas e meia, continuamos a perscrutar obstinadamente o mais pequeno encómio nas páginas da comunicação social além-fronteiras ou na boca de celebridades mais ou menos efémeras. Vivemos numa autocontemplação narcísica por procuração, renunciando a toda reflexão crítica, desde logo que um qualquer editorialista faça uma alusão elogiosa – por mais fugaz que seja – a este país à beira mar plantado ou a um dos seus súbditos. O procedimento não é recente.

O bem oleado sistema de propaganda do Estado Novo usava já amiúde esse recurso, embora de forma um pouco distinta, como ilustram as investigações de José Gil (Salazar: a retórica da invisibilidade, Lisboa, Relógio d’Água, 1995) e José Rebelo (Formas de legitimação do poder no salazarismo, Lisboa, Livros e Leituras, 1998). Para preencher a ausência (deliberada) de Salazar no espaço público nacional, a legitimação de um regime “indiscutível” e de um homem “insubstituível” passa então não apenas pela censura, mas por um conjunto doutras estratégias discursivas. Por exemplo, o ditador reserva deliberadamente as suas declarações à imprensa estrangeira, deixando à comunicação social portuguesa o papel de correia de transmissão de um conteúdo doravante autenticado por mediações supostamente imparciais.

Hoje em dia, seja qual for o partido no poder, aferramo-nos a reproduzir todas as classificações internacionais em que nos encontramos bem colocados, quase nunca questionando a objectividade das mesmas, desde que sejam em nosso favor. Sempre que brilha um jogador ou clube cá do burgo, deleitamo-nos perante as manchetes da imprensa internacional, “rendida” aos méritos desportivos lusos. “Portugal tornou-se a estrela dos mercados”, escreve um dia oWall Street Journal. No outro, é o Le Mondeque se refere ao nosso país como “o novo Eldorado para os aposentados europeus”. Segundo a edição brasileira do El País, “a educação portuguesa é a única da Europa que melhora a cada ano” e “a esquerda portuguesa encontra a fórmula do sucesso económico”. E por aí adiante…

Com certeza, temos alguns – porventura, muitos – méritos e personalidades que se destacam, mas essa fixação quase obsessiva com que reproduzimos os discursos de outrem não deixa de ser sintomática. E hoje é confortada pela própria imprensa internacional que tem posicionado Portugal como país de referência nas mais diversas áreas. Algum mérito teremos, com certeza, mas nem sempre as coisas são o que parecem.

Há meses, contactado por duas jornalistas francesas, comecei por declinar o convite para participar numa reportagem filmada em Lisboa, por não concordar com a narrativa hoje em voga sobre o “milagre económico” português, que a mesma procurava documentar. Não que não tenha orgulho no meu país, bem pelo contrário, mas procuro que o amor à pátria não me tolde demasiado o raciocínio. Acabei, todavia, por aceder ao pedido, não sem deixar bem explícita a minha posição face a tal narrativa.

Umas semanas depois, aparecia no início da peça difundida pelo magazine L’info du vrai(Canal Plus), junto ao Padrão dos Descobrimentos, vislumbrando-se um professor universitário transfigurado em apóstolo do “milagre português”. As declarações sobre os bastidores de tal suposto “milagre” (precariedade laboral, baixos salários, vagas sucessivas de emigração, nepotismo, etc..) perderam-se na sala de montagem. Presumo que não se encaixavam na narrativa mais consensual. Show must go on, como se diz lá fora…


Autor: Manuel Antunes da Cunha
DM

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21 setembro 2019