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A cordialidade no diálogo

1. As representações da Semana Santa, sem serem uma narrativa inventada como as tragédias gregas, que mostravam os dramas entre os deuses e os humanos, têm em comum com elas falar-nos do envolvimento de Deus na vida dos homens para os tornar felizes, onde amor e sofrimento andam juntos. Falando a linguagem dos factos e dos sentidos, elas são uma forma poderosa para chegar ao íntimo do coração dos homens, porque perante o sofrimento não há distâncias entre as pessoas, todos são solidários. Se vissem representado um Deus poderoso, sentiam temor e distância; mas, vendo o sofrimento de Jesus, que os ama, sentem compaixão dele (e de si próprios também) eaproximam-se uns dos outros. Desde que fiéis à História e representadas com autenticidade, estas representações da Semana Santa tornam-se numa mensagem poderosa que toca o fundo do coração humano e falam do seu destino, apesar de terem apenas uma dimensão cultural.

2. Ter cultura religiosa não é a mesma coisa que ter fé, tal como ter pessoas conhecidas não é a mesma coisa que ter amigos. São realidades distintas, embora com algo em comum. Dizer que 80% do país se revê nessa memória cultural cristã não é o mesmo que dizer que 80% vive esta cultura em termos de fé pessoalna sua vida. A cultura é uma construção de memória colectiva que aproxima as pessoas e molda os seus padrões de valores e comportamentos; nessa medida, também pode ser capaz de influenciar a consciência no presente, dependendo de ir ou não ao encontro de uma experiência positiva na vida do sujeito. Se o espectador teve essa vivência religiosa no passado, há uma maior probabilidade de o influenciar em relação aos que nunca fizeram essa experiência na sua vida. Hoje em dia, na área da experiência do campo religioso, há muita gente para quem esta memória colectiva cultural já pouco representa de memória de vivência pessoal, porque estiveram mais longe da sua prática, especialmente os dos 30 anos para baixo, tomando os anos 80 como separador cultural histórico recente.

3. Será teoricamente possível aproximar a cultura do turismo religioso da relação de fé? Um programa cultural é sempre feito para as massas, que são compostas por sujeitos com diferentes experiências e opções de vida. Depois, cada um reage de forma diferente a esse estímulo. Para uns, pode ser o sopro que aviva o lume escondido sob as cinzas; para outros, pode ser interessante, mas apenas cultural e distante ao nível pessoal. Às vezes, para que o lume espevite de novo debaixo das cinzas, basta apenas ser mais pessoal e menos institucional, porque quando o institucional se substitui ao pessoal gera sempre maior distanciamento pessoal. Para que a comunicação afectiva aconteça entre o emissor e o receptor tem de haver um espaço comumde encontro. E esse espaço comum chama-se, hoje, cordialidade no diálogo.

4. Ontem, contaram-me uma história que, não tendo a ver directamente com a Semana Santa, pode ter a ver com esse espaço comum de encontro, a cordialidade no diálogo. Uma senhora dirigiu-se à sede da paróquia para combinar o baptizado de um filho que vai fazer 8 anos, frequenta um colégio de freiras e quer ser baptizado agora para poder participar na festa religiosa do colégio, no fim do ano (a mãe educa-os religiosamente, mas prefere que sejam eles a pedir o baptismo). Foi recebida pelo responsável da paróquia de forma distante e defensiva, criticou o povo por se afastar das igrejas, acusou os psicólogos (a mãe é psicóloga) de serem responsáveis pelo actual mal-estar na Igreja porque se metem onde não são chamados (referia-se aos casos de pedofiliado clero)e, por causa disso, se tinha perdido o respeito pelos padres, que só fazia baptismos na data marcada na paróquia e não quando ela queria apesar de ela não poder estar cá nessa data… Conclusão: acabaram desentendidos e ela a dizer-lhe que nunca mais punha os pés na igreja dele.

5. A senhora contou o sucedido à superiora do colégio e ela aconselhou-a a ir à paróquia vizinha, onde também tem trabalho, dizendo-lhe que aí seria bem recebida e atendida… E, realmente, assim aconteceu. Foi recebida cordialmente, conversaram sobre o seu pedido e acabaram por combinar a data do baptismo do menino na altura em que ela podia. Resultado: ficou tão contente com a forma como foi atendida que desabafou com as amigas que já há muito tempo que tinha deixado de ir á missa, mas que, agora, ia começar a ir, mas nessa igreja… Porquê esta mudança de atitude? Por causa da atitude de cordialidade e acolhimento com que foi recebida,em vez da atitude de funcionário que descarrega nos outros as suas frustrações disfarçadas de zelo.


Autor: M. Ribeiro Fernandes
DM

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28 abril 2019