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Em Notre-Dame, no meio da multidão

As imagens de uma catedral em chamas destacavam-se, na terça e na quarta-feira, nas primeiras páginas da imprensa de todo o mundo. Jornais da África do Sul, de Marrocos, do Canadá, do México, dos Estados Unidos da América, da Argentina, do Brasil, da Colômbia, do Perú, da China, da Coreia do Sul, das Filipinas, da Índia, do Japão, da Tailândia, da Arábia Saudita, do Irão, de Israel, da Austrália e da Nova Zelândia, para referir os de alguns países de vários lados do planeta mais afastados da Europa, transformaram o que poderia ser apenas o incêndio de um templo religioso num momento de consternação planetária pela derrocada de um lugar de fortíssima densidade espiritual. Notre-Dame transformava-se em “Notre-Drame”, que era tudo o que se podia ler na primeira página do Libération. Não era um jogo de palavras. O incêndio foi um drama vivido globalmente. Abundaram, nos media, os depoimentos de muitos dos que assistiram ao vivo às terríveis imagens, mas não faltaram testemunhos de outros séculos. O diário Le Monde datado de quinta-feira publicou duas páginas com extractos de textos de quatro escritores, dois historiadores e um arquitecto, que, segundo o jornal, ajudaram a construir o mito de Notre-Dame. Ilustrados por uma reprodução de “Vista de Notre-Dame”, de Henri Matisse, os escritos tinham assinaturas célebres, como a de Victor Hugo, cujo genial romance Notre-Dame de Paris, escrito há quase dois séculos, se tornou agora, rapidamente, no livro mais vendido pela Amazon francesa e, certamente, por muitas outras livrarias. Mas, de entre todos os textos, o mais emocionante é, com certeza, o de Paul Claudel. Em A minha conversão, que o escritor publicou em 1913, conta o que lhe aconteceu aos 18 anos, quando decidiu dirigir-se a Notre-Dame de Paris para acompanhar as celebrações de Natal. Não ia guiado pela fé, mas comandado pela vocação literária que despontava: “Eu começava então a escrever e parecia-me que nas cerimónias católicas, encaradas com diletante superioridade, encontraria um excitante apropriado e matéria para alguns exercícios decadentes. Foi nesse estado de espírito que, acotovelado e empurrado pela multidão, assisti, com um prazer medíocre, à missa solene. Depois, não tendo nada melhor para fazer, voltei para as vésperas. Os meninos da catequese vestidos de branco e os alunos do seminário menor de Saint-Nicolas-du-Chardonnet, que assistiam, estavam a cantar o que mais tarde soube ser o Magnificat. Eu estava de pé no meio da multidão, perto da segunda coluna na entrada do coro, à direita, do lado da sacristia. E foi então que se produziu o acontecimento que domina toda a minha vida. Num instante o meu coração foi tocado e eu acreditei. Acreditei, com tamanha força de adesão, tal arrebatamento de todo o meu ser, tão poderosa convicção, tal certeza de que não havia espaço para qualquer tipo de dúvida, que, a partir de então, todos os livros, todos os raciocínios, todas as contingências de uma vida conturbada não puderam abalar a minha fé, nem, para dizer a verdade, tocá-la. Tinha sido repentinamente acometido pelo dilacerante sentimento de inocência, a eterna infância de Deus, uma revelação inefável.” A multidão de que fala Paul Claudel não diferirá da que constantemente acorreu à catedral de Notre-Dame. Mas, entre acotovelamentos e empurrões, mesmo que os testemunhos públicos não tenham existido, houve sempre, ao longo dos séculos, quem tivesse mudado de vida por causa de um instante de pura atenção. Nenhum incêndio destruirá esses milagres. Nenhumas cinzas podem obscurecer essas fulgurações que auguram a ressurreição.
Autor: Eduardo Jorge Madureira Lopes
DM

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21 abril 2019