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As tragédias não se medem aos palmos

Apesar do forte dispositivo de segurança, do intenso tráfego e da multidão compacta, pairava, nesta terça-feira 16 de Abril, junto à Ponte Saint Michel, um certo recolhimento. Por instantes, nacionais e turistas detinham-se frente à fachada de Notre-Dame, enquanto equipas de televisão prosseguiam gravações e directos, com vozes ainda marcadas pela emoção que o incêndio da véspera disseminara um pouco por todo o mundo. Durante algumas horas, quase mergulhámos numa “tragédia televisiva”, um evento inesperado que suscita a suspensão da ordem social ou política, na sequência de um atentado, acidente ou catástrofe natural. A transmissão em directo “interrompe o normal fluxo televisivo, gera uma importante atenção pública, prolonga-se por um período de vários dias e adquire características semelhantes à tragédia como texto e espectáculo” (Cintra Torres, 2006, p. 23). Segundo Edgar Morin, o assassinato de John Kennedy (1963) constituiu a “primeira teletragédia planetária”. Muitas outras se seguiram, como a explosão do vaivém espacial Challenger (1986), a morte da Princesa Diana (1997), o 11 de Setembro (2001), o tsunami asiático (2004) ou os atentados de Paris (2015). Em Portugal, tivemos recentemente a queda da ponte d’Entre-os-Rios (2001) e os incêndios de Pedrógão (2017). Sem incluir a dimensão da morte, a cobertura mediática do incêndio de Notre-Dame também se caracterizou pela emotividade, o uso intensivo do directo e o recurso a alguns arquétipos (herói, vilão, coro). Pintada por Matisse e Chagall, cantada por Piaf e Ferré, celebrada em óperas, ballets, musicais, bandas desenhadas, romances, filme e até videojogos, a catedral faz parte do coração da França, da sua história, cultura, património e imaginário nacional, mas não só... As imagens de jovens a rezar o terço em plena rua – enquanto as labaredas consumiam parte do monumento mais visitado da Europa – rememoravam aos mais distraídos as raízes cristãs do Velho Continente, assim como a força da fé que anima centenas de milhões de seres humanos. Nos media e nas redes sociais, a cobertura seguiu o esquema habitual: as imagens apocalípticas do desastre e de recordação dos tempos passados, as referências à heroicidade dalguns intervenientes, a procura de culpados, os testemunhos (se possível, portugueses) de anónimos e personalidades, os comentários em estúdio, a indagação das causas, as medidas a tomar, os títulos da imprensa mundial, as curiosidades, a preservação do património – recordando o Chiado (1988) e o Museu Nacional do Brasil (2018) – a mobilização nascente, etc. Como sempre ocorre, à medida que passavam as horas, levantaram-se cada vez mais vozes a recriminar quantos se identificavam com este movimento de emoção coletiva. Não há – apontava esse dedo acusador – mobilizações tão fortes para catástrofes humanitárias como as que acontecem neste preciso momento em Moçambique ou na esquina da nossa rua. As multimilionárias promessas de dons que então despontavam, num abrir e fechar de olhos, só vieram reforçar o leque de argumentos de tais discursos. De facto, assentada a poeira dos acontecimentos, é importante reflectir sobre a cobertura mediática, a eclosão de fortes mobilizações afectivas que se traduzem, com alguma frequência, em fracas mobilizações cívicas ou ainda a intensidade emocional a geometria variável em função das populações e/ou países afectados. Não parece, porém, que deslegitimar a emoção colectiva em torno de uma tragédia – porque há sempre outros dramas – numa tentativa de classificação do grau de dramaticidade das mesmas seja muito frutífero. Todos somos muito lestos na hora de apontar imperfeições. Poucos se dão sequer ao trabalho – incluindo o autor destas linhas – de parar uns instantes para conversar com o sem-abrigo que cruzamos todos os dias ao virar da esquina, de dar um pouco de tempo ao vizinho que mais precisa ou alguns meses de voluntariado num país distante. As tragédias não se medem aos palmos. Todas requerem uma mobilização efectiva, contínua e global.
Autor: Manuel Cunha
DM

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20 abril 2019