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Aqui não temos morada permanente...

Muitas vezes teremos lido, certamente, aquela frase da Epístola aos Hebreus, onde se diz: “como não temos aqui morada permanente, vamos em busca da futura” (Heb 13,14). Mas a leitura nem sempre nos faz reflectir. Por vezes, parece que esta verdade tão elementar é acolhida por nós duma maneira distraída e não tem qualquer repercussão na forma como vivemos.

Alguém comentava que o homem contemporâneo, ao ver a sua longevidade crescer, nos últimos anos, dum modo significativo, atira para as calendas do futuro esta realidade: não quer pensar nela e sente-se incomodado quando dela se fala. E com este silêncio cómodo vai vivendo, procurando ignorar a sua realidade. No entanto, é por vezes surpreendido – diria até, assustado – com a morte prematura de alguém conhecido, por acidente ou por maleita que a nossa medicina ainda não conseguiu enfrentar com êxito.

A mortalidade infantil diminuiu com índices robustos, e se o nosso mundo não é farto de crianças, não o é por morrerem muitas, mas apenas porque a contracepção impera de um modo vigoroso, impedindo o desenvolvimento normal do tecido humano e prometendo, num futuro mais ou menos próximo, – sobre o qual o egoísmo humano faz um silêncio de conveniência – muitos e graves problemas para a sustentabilidade das próprias sociedades.

Sou ainda do tempo em que a mortalidade infantil tinha um peso mais assinalável no índice demográfico. Recordo os enterros de muitos “anjinhos” (assim chamávamos aos bebés que morriam nos primeiros tempos da sua existência). Não entendia muito bem o choro convulsivo, sobretudo das suas mães, porque, pragmaticamente, pensava que as suas almas – totalmente puras e inocentes – estavam já no céu e, que, por isso, se encontravam no melhor lugar a que um mortal podia aspirar.

Confidenciei esta surpresa crítica a minha mãe, que me ralhou, dizendo que a perda de um filho, mesmo pequenino, para uma mãe, era mais doloroso do que se fosse ela mesma a morrer. Fiquei assombrado e perguntei: “Então, conclui, tu gostas mais de mim do que de ti?” Não respondeu directamente. Disse-me apenas: “Pensa bem e não faças perguntas dessas..… Quando vires o enterro dum “anjinho”, lembra-te que Nosso Senhor nos pode chamar em qualquer momento e que nós nos devemos preparar muito bem para ir ao seu encontro...”

Creio que aquele “pensa bem” de minha mãe não sortiu muito efeito, porque rapidamente me devo ter posto a jogar futebol ou a brincar com os rapazes da minha idade… Mas hoje, muitos anos volvidos, agradeço-o com sinceridade, porque de vez em quando me vinha à memória e me surpreendia a pensar na vida e na morte: “aqui não temos morada permanente...” Com frequência lançamos na gaveta do esquecimento esta frase escriturística e discorremos sobre nós e sobre a vida como se ela fosse uma afirmação complicada, que nos surpreende e desgosta, pelo que mais vale não pensar nesse assunto e fazer discorrer os nossos dias sem lhe dar o relevo que merece.

No entanto, quando hoje me falam de alguém meu conhecido, que não vejo nem sei do seu destino há muito tempo, sempre me apetece perguntar: “Já morreu?” Não o faço habitualmente por prudência ou delicadeza, porque mostrar a minha ignorância sobre a sua morte, seria para o parente com quem falo uma manifestação, da minha parte, de falta de apreço por aquele com quem tinha lidado de perto há muitos anos.

Mas quando esse cuidado me escapa, e pergunto com certa leviandade ao meu interlocutor: “E então como está o teu primo, “Fulano”, tão simpático!” O seu rosto torna-se sério, franze as sobrancelhas, e, com a voz um pouco mais baixa, responde: “Morreu no ano passado de doença prolongada...” Faço o que posso, peço desculpa, envergonhado e cá vou pensando com os meus botões: “aqui não temos morada permanente”...


Autor: Pe. Rui Rosas da Silva
DM

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26 janeiro 2019