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Descentralização: um logro

O Governo socialista erigiu a descentralização como “pedra angular da Reforma do Estado”, proclamando a autonomia do poder local como a sua grande aposta.

Para concretizar este propósito, escolheu iniciar o processo pela via mais simples: a do reforço das competências do poder municipal, com o argumento de que não faria sentido começar pela transferência de competências da administração central para a administração regional sem primeiro reforçar ou aprofundar a descentralização de base municipal.

A par disso, consciente das dificuldades e resistências que mesmo assim iria enfrentar, o Governo optou pela via do gradualismo, preparando um pacote legislativo a aprovar até ao fim do corrente ano de 2018, mas cujo integral cumprimento só seria exigível em Janeiro de 2020.

Nessa conformidade, em concertação com a Associação Nacional dos Municípios Portugueses, cuja presidência e maioria controla, o executivo aprovou a Lei-Quadro da descentralização – Lei 50/2018, de 16 de Agosto – e a Nova Lei das Finanças Locais – Lei 51/2018, da mesma data – e dezasseis outros diplomas sectoriais, faltando apenas a aprovação dos sete últimos diplomas que visam densificar e concretizar os princípios e objectivos programáticos daquela Lei-Quadro.

Entre as novidades instituídas por este pacote legislativo, conta-se o Fundo de Financiamento da Descentralização (FFD), onde se disciplinam os recursos financeiros a atribuir às autarquias locais e às entidades intermunicipais para o exercício das novas competências.

Que dizer deste procedimento e como é entendido por muitos dos presidentes dos mais importantes municípios portugueses que sobre o tema se têm pronunciado?

Pois bem, a conclusão que pode retirar-se é que o Governo errou nas prioridades e defraudou as expectativas daqueles que acreditaram que o centralismo do Estado iria finalmente ser abolido a breve trecho, após vários séculos de reinado.

Com o devido respeito, tenho para mim que a grande prioridade em termos de descentralização reside na regionalização, patamar que se mostra essencial para o exercício autónomo de competências ao nível regional e que as Comissões de Coordenação e Desenvolvimento regional e as estruturas associativas dos municípios não têm.

Aprofundar a autonomia do poder municipal é, sem dúvida, uma medida necessária e desejável, mas que não é pressuposto da regionalização nem tem o alcance verdadeiramente descentralizador desta, como, de resto, se extrai do teor dos referidos diplomas-quadro e sectoriais que foram já aprovados.

Com efeito, as novas responsabilidades que foram e que estão em vias de ser transferidas para os municípios ou entidades intermunicipais não passam de meras tarefas que não envolvem competências para planear, decidir e executar políticas sem a dependência do poder central.

A título de exemplo, cito as intervenções de reparações e de gestão e conservação de edifícios públicos ou a construção de novas infra-estruturas, nas áreas da educação ou da saúde, mediante contratos-programa a celebrar com os ministérios da tutela e os municípios ou a gestão de trabalhadores inseridos em certas carreiras do pessoal administrativo ou auxiliar de determinados níveis.

Acresce que as transferências financeiras que previsivelmente irão ser feitas, designadamente em áreas fundamentais como as que venho de citar, não poderão deixar de ser insuficientes como o têm sido ao longo das últimas décadas, pelo que será impossível aos municípios recuperar da situação de carência de investimentos em pessoas e equipamentos até agora imputável ao Estado português.

Daí que o que este se propõe fazer é simplesmente transferir para os municípios os múltiplos problemas que vem tendo, com a sua consequente desresponsabilização!

Por conseguinte, não admira que este processo não convença os autarcas da sua bondade, pois sabem que vão aumentar as responsabilidades das suas autarquias sem que aumentem, na proporção adequada, os correspondentes recursos financeiros.

E a prova disso é que foram muito poucos os que aceitaram sujeitar as suas autarquias, já em 2019, à aplicação dos aludidos novos diplomas sectoriais e a escassa verba – 261,2 milhões de euros – prevista no Orçamento de Estado 2019 para dotar o dito FFD, quando a previsão inicial apontava para uma verba de 879 milhões de euros.

Claro que é muito bonita e tem efeito garantido a afirmação de um ministro de que o nosso país é “estupidamente centralizador” e de que, com a nova legislação, não mais vai ser necessário que a decisão de mandar pôr telhas numa escola secundária haja de ser tomada pelos competentes serviços do Ministério da Educação.

Certamente que não haverá ninguém que não aplauda que essa e outras tarefas semelhantes transitem para a órbita mais próxima dos municípios ou até das freguesias.

Mas não é essa a descentralização de que o país carece. A verdadeira reforma descentralizadora reside, como é evidente, na regionalização administrativa. E dessa não curou o Governo nem a Assembleia da República de a promover e de a concretizar.

É nesse sentido que me parece correcto poder afirmar-se que o processo legislativo a que venho de referir-me não configura uma autêntica reforma do Estado: é um mero arremedo ou simulacro de descentralização. Um logro!


Autor: António Brochado Pedras
DM

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9 novembro 2018